- accunha
4 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - Capítulos 59 a 84
CAPÍTULO LIX / UM ENCONTRO
Deve ser um vinho enérgico a política, dizia eu comigo, ao sair da
casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que na Rua dos
Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo
companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente, a sege
seguiu, e eu fui andando... andando... andando...
— Por que não serei eu ministro?
Esta idéia, rútila e grande, — trajada ao bizarro, como diria o Padre
Bernardes, — esta idéia começou uma vertigem de cabriolas e eu
deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. Não pensei
mais na tristeza de Lobo Neves; sentia a atração do abismo. Recordei
aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e
travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim
mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio
Público, e tudo me parecia dizer a mesma coisa. — Por que não serás
ministro, Cubas? — Cubas, por que não serás ministro de Estado? Ao
ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo o organismo.
Entrei, fui sentar-me num banco, a remoer aquela idéia. E Virgília
que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo encaminhar-se para
mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse
donde fosse.
Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e
pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro
de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem
agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, — ou,
literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a
um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito
primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham
duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão
de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as
pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando
um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete
de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
— Aposto que me não conhece, Sr. Dr. Cubas? disse ele.
— Não me lembra...
— Sou o Borba, o Quincas Borba.
Recuei espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um
Bossuet ou de Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas
Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de
colégio, tão inteligente e abastado. Quincas Borba! Não; impossível;
não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida,
essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que
toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um
resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar
escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele suportava com
firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os olhos; se
a figura repelia, a comparação acabrunhava.
— Não é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha
tudo. Uma vida de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se
das nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo
mendigo...
E alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença,
parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente.
Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia nele a
resignação cristã, nem a conformidade filosófica. Parece que a
miséria lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação de lama.
Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa graça
indolente.
— Procure-me, disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.
Um sorriso magnífico lhe abriu os lábios. — Não é o primeiro que me
promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não
me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro; dinheiro
sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não fiam. Nem
as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de angu, nem
isso fiam as malditas quitandeiras... Um inferno, meu... ia dizer meu
amigo... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda hoje não
almocei.
— Não?
— Não; saí muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau
das escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa
bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e
ainda não comi...
Tirei a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis, — a menos limpa,
— e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça.
Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.
— In hoc signo vinces! bradou.
E depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa
expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima.
Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério, e
pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que
não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.
— Pois está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.
— Sim? acudiu ele, dando um bote para mim.
— Trabalhando, concluí eu.
Fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa
abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele,
escarranchando-se diante de mim.
CAPÍTULO LX / O ABRAÇO
Cuidei que o pobre diabo estivesse doido, e ia afastar-me, quando ele
me pegou no pulso, e olhou alguns instantes para o brilhante que eu
trazia no dedo. Senti-lhe na mão uns estremeções de cobiça, uns
pruridos de posse.
— Magnífico! disse ele.
Depois começou a andar à roda de mim e a examinar-me muito.
— O senhor trata-se, disse ele. Jóias, roupa fina, elegante e..
Compare esses sapatos aos meus; que diferença! Pudera não! Digolhe
que se trata. E moças? Como vão elas? Está casado?
— Não...
— Nem eu.
— Moro na rua...
— Não quero saber onde mora, atalhou Quincas Borba. Se alguma
vez nos virmos, dê-me outra nota de cinco mil-réis; mas permita-me
que não a vá buscar à sua casa. É uma espécie de orgulho... Agora,
adeus; vejo que está impaciente.
— Adeus!
— E obrigado. Deixa-me agradecer-lhe de mais perto?
E dizendo isto abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo.
Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa
amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a
parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a miséria
digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de
agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que
separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo...
— Ora adeus! Vamos jantar, disse comigo.
Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba
furtara-mo no abraço.
CAPÍTULO LXI / UM PROJETO
Jantei triste. Não era a falta do relógio que me pungia, era a imagem
do autor do furto, e as reminiscências de criança, e outra vez a
comparação, e a conclusão... Desde a sopa, começou a abrir em mim
a flor amarela e mórbida do capítulo XXV, e então jantei depressa,
para correr à casa de Virgília. Virgília era o presente; eu queria
refugiar-me nele, para escapar às opressões do passado, porque o
encontro do Quincas Borba, tornara-me aos olhos o passado, não
qual fora deveras, mas um passado roto, abjeto, mendigo e gatuno.
Saí de casa, mas era cedo; iria achá-los à mesa. Outra vez pensei no
Quincas Borba, e tive então um desejo de tornar ao Passeio Público,
a ver se o achava; a idéia de o regenerar surgiu-me como uma forte
necessidade. Fui; mas já não o achei. Indaguei do guarda; disse-me
que efetivamente “esse sujeito” ia por ali às vezes.
— A que horas?
— Não tem hora certa.
Não era impossível encontrá-lo noutra ocasião; prometi a mim
mesmo lá voltar. A necessidade de o regenerar, de o trazer ao
trabalho e ao respeito de sua pessoa enchia-me o coração; eu
começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de
mim próprio... Nisto caía a noite; fui ter com Virgília.
CAPÍTULO LXII / O TRAVESSEIRO
Fui ter com Virgília; depressa esqueci o Quincas Borba. Virgília era o
travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático,
enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava
repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou
até dolorosas. E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da
existência de Virgília; não podia ser. Cinco minutos bastaram para
olvidar inteiramente o Quincas Borba; cinco minutos de uma
contemplação mútua, com as mãos presas umas nas outras; cinco
minutos e um beijo. E lá se foi a lembrança do Quincas Borba...
Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas,
que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um
travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir?
CAPÍTULO LXIII / FUJAMOS!
Ai! Nem sempre dormir. Três semanas depois, indo à casa de Virgília,
— eram quatro horas da tarde, — achei-a triste e abatida. Não me
quis dizer o que era; mas, como eu instasse muito:
— Creio que o Damião desconfia alguma coisa. Noto agora umas
esquisitices nele... Não sei. Trata-me bem, não há dúvida; mas o
olhar parece que não é o mesmo. Durmo mal; ainda esta noite
acordei, aterrada; estava sonhando que ele me ia matar. Talvez seja
ilusão, mas eu penso que ele desconfia...
Tranqüilizei-a como pude; disse que podiam ser cuidados políticos.
Virgília concordou que seriam, mas ficou ainda muito excitada e
nervosa. Estávamos na sala de visitas, que dava justamente para a
chácara, onde trocáramos o beijo inicial. Uma janela aberta deixava
entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei a
olhar para as cortinas, sem as ver. Empunhara o binóculo da
imaginação; lobrigava, ao longe, uma casa nossa, uma vida nossa,
um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento,
nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão
da vontade. Esta idéia embriagou-me; eliminados assim o mundo, a
moral e o marido, bastava penetrar naquela habitação dos anjos.
— Virgília, disse eu, proponho-te uma coisa.
— Que é?
— Amas-me?
— Oh! suspirou ela, cingindo-me os braços ao pescoço.
Virgília amava-me com fúria; aquela resposta era a verdade patente.
Com os braços ao meu pescoço, calada, respirando muito, deixou-se
ficar a olhar para mim, com os seus grandes e belos olhos, que
davam uma sensação singular de luz úmida; eu deixei-me estar a vêlos,
a namorar-lhe a boca, fresca como a madrugada, e insaciável
como a morte. A beleza de Virgília tinha agora um tom grandioso,
que não possuíra antes de casar. Era dessas figuras talhadas em
pentélico, de um lavor nobre, rasgado e puro, tranqüilamente bela,
como as estátuas, mas não apática nem fria. Ao contrário, tinha o
aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer que, na realidade,
resumia todo o amor. Resumia-o sobretudo naquela ocasião, em que
exprimia mudamente tudo quanto pode dizer a pupila humana. Mas o
tempo urgia; deslacei-lhe as mãos, peguei-lhe nos pulsos, e, fito
nela, perguntei se tinha coragem.
— De quê?
— De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande
ou pequena, à tua vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa,
onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja perigos para
ti, onde vivamos um para o outro... Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele
pode descobrir alguma coisa, e estarás perdida...ouves? perdida...
morta... e ele também, porque eu o matarei, juro-te.
Interrompi-me; Virgília empalidecera muito, deixou cair os braços e
sentou-se no canapé. Esteve assim alguns instantes, sem me dizer
palavra, não sei se vacilante na escolha, se aterrada com a idéia da
descoberta e da morte. Fui-me a ela, insisti na proposta, disse-lhe
todas as vantagens de uma vida a sós, sem zelos, nem terrores, nem
aflições. Virgília ouvia-me calada; depois disse:
— Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do
mesmo modo.
Mostrei-lhe que não. O mundo era assaz vasto, e eu tinha os meios
de viver onde quer que houvesse ar puro e muito sol; ele não
chegaria até lá; só as grandes paixões são capazes de grandes ações,
e ele não a amava tanto que pudesse ir buscá-la, se ela estivesse
longe. Virgília fez um gesto de espanto e quase indignação;
murmurou que o marido gostava muito dela.
— Pode ser, respondi eu; pode ser que sim...
Fui até a janela, e comecei a rufar com os dedos no peitoril. Virgília
chamou-me; deixei-me estar, a remoer os meus zelos, a desejar
estrangular o marido, se o tivesse ali à mão... Justamente, nesse
instante, apareceu na chácara o Lobo Neves. Não tremas assim,
leitora pálida; descansa, que não hei de rubricar esta lauda com um
pingo de sangue. Logo que apareceu na chácara, fiz-lhe um gesto
amigo, acompanhado de uma palavra graciosa; Virgília retirou-se
apressadamente da sala, onde ele entrou daí a três minutos.
— Está cá há muito tempo? disse-me ele.
— Não.
Entrara sério, pesado, derramando os olhos de um modo distraído,
costume seu, que trocou logo por uma verdadeira expansão de
jovialidade, quando viu chegar o filho, o Nhonhô, o futuro bacharel do
capítulo VI; tomou-o nos braços, levantou-o ao ar, beijou-o muitas
vezes. Eu, que tinha ódio ao menino, afastei-me de ambos. Virgília
tornou à sala.
— Ah! respirou Lobo Neves, sentando-se preguiçosamente no sofá.
— Cansado? perguntei eu.
— Muito; aturei duas maçadas de primeira ordem, uma na câmara e
outra na rua. E ainda temos terceira, acrescentou, olhando para a
mulher.
— Que é? perguntou Virgília.
— Um... Adivinha!
Virgília sentara-se ao lado dele, pegou-lhe numa das mãos, compôslhe
a gravata, e tornou a perguntar o que era.
— Nada menos que um camarote.
— Para a Candiani?
— Para a Candiani.
Virgília bateu palmas, levantou-se, deu um beijo no filho, com um ar
de alegria pueril, que destoava muito da figura; depois perguntou se
o camarote era de boca ou do centro, consultou o marido, em voz
baixa, acerca da toilette que faria, da ópera que se cantava, e de não
sei que outras coisas.
— Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves.
— Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o
melhor vinho do Rio de Janeiro.
— Nem por isso bebe muito.
Ao jantar, desmenti-o; bebi mais do que costumava; ainda assim,
menos do que era preciso para perder a razão. Já estava excitado,
fiquei um pouco mais. Era a primeira grande cólera que eu sentia
contra Virgília. Não olhei uma só vez para ela durante o jantar; falei
de política, da imprensa, do ministério, creio que falaria de teologia,
se a soubesse, ou se me lembrasse. Lobo Neves acompanhava-me
com muita placidez e dignidade, e até com certa benevolência
superior; e tudo aquilo me irritava também, e me tornava mais
amargo e longo o jantar. Despedi-me apenas nos levantamos da
mesa.
— Até logo, não? perguntou Lobo Neves.
— Pode ser.
E saí.
CAPÍTULO LXIV / A TRANSAÇÃO
Vaguei pelas ruas e recolhi-me às nove horas. Não podendo dormir,
atirei-me a ler e escrever. Às onze horas estava arrependido de não
ter ido ao teatro, consultei o relógio, quis vestir-me, e sair. Julguei,
porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de fraqueza.
Evidentemente, Virgília começava a aborrecer-se de mim, pensava
eu. E esta idéia fez-me sucessivamente desesperado e frio, disposto
a esquecê-la e a matá-la. Via-a dali mesmo, reclinada no camarote,
com os seus magníficos braços nus, — os braços que eram meus, só
meus, — fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo que
havia de ter, o colo de leite, os cabelos postos em bandos, à maneira
do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos dela... Via-a
assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava a despi-la,
a pôr de lado as jóias e sedas, a despenteá-la com as minhas mãos
sôfregas e lascivas, a torná-la, — não sei se mais bela, se mais
natural, — a torná-la minha, somente minha, unicamente minha.
No dia seguinte, não me pude ter; fui cedo à casa de Virgília; achei-a
com os olhos vermelhos de chorar.
— Que houve? perguntei.
— Você não me ama, foi a sua resposta; nunca me teve a menor
soma de amor. Tratou-me ontem como se me tivesse ódio. Se eu ao
menos soubesse o que é que fiz! Mas não sei. Não me dirá o que foi?
— Que foi o quê? Creio que não houve nada.
— Nada? Tratou-me como não se trata um cachorro...
A esta palavra, peguei-lhe nas mãos, beijei-as, e duas lágrimas
rebentaram-lhe dos olhos.
— Acabou, acabou, disse eu.
Não tive ânimo de argüir, e, aliás, argüi-la de quê? Não era culpa
dela se o marido a amava. Disse-lhe que não me fizera coisa
nenhuma, que eu tinha necessariamente ciúmes do outro, que nem
sempre o podia suportar de cara alegre; acrescentei que talvez
houvesse nele muita dissimulação, e que o melhor meio de fechar a
porta aos sustos e às dissensões era aceitar a minha idéia da
véspera.
— Pensei nisso, acudiu Virgília; uma casinha só nossa, solitária,
metida num jardim, em alguma rua escondida, não é? Acho a idéia
boa; mas para que fugir?
Disse isto com o tom ingênuo e preguiçoso de quem não cuida em
mal, e o sorriso que lhe derreava os cantos da boca trazia a mesma
expressão de candidez. Então, afastando-me, respondi:
— Você é que nunca me teve amor.
— Eu?
— Sim, é uma egoísta! prefere ver-me padecer todos os dias... é uma
egoísta sem nome!
Virgília desatou a chorar, e para não atrair gente, metia o lenço na
boca, recalcava os soluços; explosão que me desconcertou. Se
alguém a ouvisse, perdia-se tudo. Inclinei-me para ela, travei-lhe dos
pulsos, sussurrei-lhe os nomes mais doces da nossa intimidade;
mostrei-lhe o perigo; o terror apaziguou-a.
— Não posso, disse ela daí a alguns instantes; não deixo meu filho;
se o levar, estou certa de que ele me irá buscar ao fim do mundo.
Não posso; mate-me você, se o quiser, ou deixe-me morrer... Ah!
meu Deus! meu Deus!
— Sossegue; olhe que podem ouvi-la.
— Que ouçam! Não me importa.
Estava ainda excitada; pedi-lhe que esquecesse tudo, que me
perdoasse, que eu era um doido, mas que a minha insânia provinha
dela e com ela acabaria. Virgília enxugou os olhos e estendeu-me a
mão. Sorrimos ambos; minutos depois, tornávamos ao assunto da
casinha solitária, em alguma rua escusa...
CAPÍTULO LXV / OLHEIROS E ESCUTAS
Interrompeu-nos o rumor de um carro na chácara. Veio um escravo
dizer que era a baronesa X. Virgília consultou-me com os olhos.
— Se a senhora está assim com dor de cabeça, disse eu, parece que
o melhor é não receber.
— Já se apeou? perguntou Virgília ao escravo.
— Já se apeou; diz que precisa muito de falar com sinhá!
— Que entre!
A baronesa entrou daí a pouco. Não sei se contava comigo na sala;
mas era impossível mostrar maior alvoroço.
— Bons olhos o vejam! exclamou. Onde se mete o senhor que não
aparece em parte nenhuma? Pois olhe, ontem admirou-me não o ver
no teatro. A Candiani esteve deliciosa. Que mulher! Gosta da
Candiani? É natural. Os senhores são todos os mesmos. O barão dizia
ontem, no camarote, que uma só italiana vale por cinco brasileiras.
Que desaforo! e desaforo de velho, que é pior. Mas por que é que o
senhor não foi ontem ao teatro?
— Uma enxaqueca.
— Qual! Algum namoro; não acha, Virgília? Pois, meu amigo,
apresse-se, porque o senhor deve estar com quarenta anos... ou
perto disso. .. Não tem quarenta anos?
— Não lhe posso dizer com certeza, respondi eu; mas se me dá
licença, vou consultar a certidão de batismo.
— Vá, vá... E estendendo-me a mão: — Até quando? Sábado ficamos
em casa; o barão está com umas saudades suas...
Chegando à rua, arrependi-me de ter saído. A baronesa era uma das
pessoas que mais desconfiavam de nós. Cinqüenta e cinco anos, que
pareciam quarenta, macia, risonha, vestígios de beleza, porte
elegante e maneiras finas. Não falava muito nem sempre; possuía a
grande arte de escutar os outros, espiando-os; reclinava-se então na
cadeira, desembainhava um olhar afiado e comprido, e deixava-se
estar. Os outros, não sabendo o que era, falavam, olhavam,
gesticulavam, ao tempo que ela olhava só, ora fixa, ora móbil,
levando a astúcia ao ponto de olhar às vezes para dentro de si,
porque deixava cair as pálpebras; mas, como as pestanas eram
rótulas, o olhar continuava o seu ofício, remexendo a alma e a vida
dos outros.
A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho
de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um
reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma
lesão de coração: era um hospital concentrado. Os olhos, porém
luziam de muita vida e saúde. Virgília, nas primeiras semanas, lhe
tinha medo nenhum; dizia-me que, quando o Viegas parecia
espreitar, com o olhar fixo, estava simplesmente contando dinheiro.
Com efeito, era um grande avaro.
Havia ainda o primo de Virgília, o Luís Dutra, que eu agora
desarmava à força de lhe falar nos versos e prosas, e de o apresentar
aos conhecidos. Quando estes, ligando o nome à pessoa, se
mostravam contentes da apresentação, não há dúvida que Luís Dutra
exultava de felicidade; mas eu curava-me da felicidade com a
esperança de que ele nos não denunciasse nunca. Havia, enfim,
umas duas ou três senhoras, vários gamenhos, e os fâmulos, que
naturalmente se desforravam assim da condição servil, e tudo isso
constituía uma verdadeira floresta de olheiros e escutas, por entre os
quais tínhamos de resvalar com a tática e maciez das cobras.
CAPÍTULO LXVI / AS PERNAS
Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me pernas levando,
ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do Hotel
Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente
andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas,
que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém
ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta,
zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de
certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança
de galinha atada pelos pés.
Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós
deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e
dissestes uma à outra: — Ele precisa comer, são horas de jantar,
vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte
fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito,
não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e
finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso
propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta
página.
CAPÍTULO LXVII / A CASINHA
Jantei e fui a casa. Lá achei uma caixa de charutos, que me mandara
o Lobo Neves, embrulhada em papel de seda, e ornada de fitinhas
cor-de-rosa. Entendi, abri-a, e tirei este bilhete:
Meu B...
Desconfiam de nós; tudo está perdido; esqueça-me
para sempre. Não nos veremos mais. Adeus; esqueçase
da infeliz
V...a”.
Foi um golpe esta carta; não obstante, apenas fechou a noite, corri à
casa de Virgília. Era tempo; estava arrependida. Ao vão de uma
janela, contou-me o que se passara com a baronesa. A baronesa
disse-lhe francamente que se falara muito, no teatro, na noite
anterior, a propósito da minha ausência do camarote do Lobo Neves;
tinham comentado as minhas relações na casa; em suma, éramos
objeto da suspeita pública. Concluiu dizendo que não sabia que fazer.
— O melhor é fugirmos, insinuei.
— Nunca, respondeu ela abanando a cabeça.
Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela
estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração
pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para
conservar ambas as vantagens, e a fuga só lhe deixava uma. Talvez
senti alguma coisa semelhante a despeito; mas as comoções
daqueles dois dias eram já muitas, e o despeito morreu depressa. Vá
lá; arranjemos a casinha.
Com efeito, achei-a, dias depois, expressamente feita, em um
recanto da Gamboa. Um brinco! Nova, caiada de fresco, com quatro
janelas na frente e duas de cada lado, — todas com venezianas cor
de tijolo, — trepadeira nos cantos, jardim na frente; mistério e
solidão. Um brinco!
Convencionamos que iria morar ali uma mulher, conhecida de
Virgília, em cuja casa fora costureira e agregada. Virgília exercia
sobre ela verdadeira fascinação. Não se lhe diria tudo; ela aceitaria
facilmente o resto.
Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma
aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que
me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava
cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé,
de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a
nossa duplicidade. Agora podia evitar os jantares freqüentes, o chá
de todas as noites, enfim a presença do filho deles, meu cúmplice e
meu inimigo. A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à
porta; — dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior,
excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem
baronesas, sem olheiros, sem escutas, — um só mundo, um só casal,
uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, — a unidade moral de
todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.
CAPÍTULO LXVIII / O VERGALHO
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo
fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um
ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro
não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não,
perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia
caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada
menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara
alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a
bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na
quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a
quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa,
bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas
conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que
sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu
fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só
exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio acheilhe
um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o
Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, —
transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um
freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria.
Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das
pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga
condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ialhe
pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam
as sutilezas do maroto!
CAPÍTULO LXIX / UM GRÃO DE SANDICE
Este caso faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se
Romualdo e dizia ser Tamerlão. Era a sua grande e única mania, e
tinha uma curiosa maneira de a explicar.
— Eu sou o ilustre Tamerlão, dizia ele. Outrora fui Romualdo, mas
adoeci, e tomei tanto tártaro, tanto tártaro, tanto tártaro, que fiquei
Tártaro, e até rei dos Tártaros. O tártaro tem a virtude de fazer
Tártaros.
Pobre Romualdo! A gente ria da resposta, mas é provável que o leitor
não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida,
tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a propósito de
um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito
melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e
Prudêncios.
CAPÍTULO LXX / D. PLÁCIDA
Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor;
envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo
para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito
menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um
desvão de telhado é o infinito para as andorinhas.
Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos
espaços, como uma lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme
hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que sofreu um
casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um
assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão
esse canto de Terra, que lhes deu algumas ilusões.
Virgília fez daquilo um brinco; designou as alfaias mais idôneas, e
dispô-las com a intuição estética da mulher elegante; eu levei para lá
alguns livros, e tudo ficou sob a guarda de D. Plácida, suposta, e, a
certos respeitos, verdadeira dona da casa.
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara a intenção e doía-lhe o
ofício; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de
si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim
durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria,
carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por
ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a
benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança,
imaginei uma história patética dos meus amores com Virgília, um
caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido,
e não sei que outros toques de novela. D. Plácida não rejeitou uma só
página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da
consciência. Ao cabo de seis meses, quem nos visse a todos três
juntos diria que D. Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, — os cinco contos
achados em Botafogo, — como um pão para a velhice. D. Plácida
agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar
por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que
tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.
CAPÍTULO LXXI / O SENÃO DO LIVRO
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não
tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para
esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas
o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração
cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste
livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e
fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à
direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram,
gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
E caem! — Folhas misérrimas do meu cipreste, heis de cair, como
quaisquer outras belas e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia
uma lágrima de saudade. Esta é a grande vantagem da morte, que,
se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar...
Heis de cair.
CAPÍTULO LXXII / O BIBLIÔMANO
Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas
últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não
quero dar pasto à crítica do futuro.
Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho,
que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a
página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê,
desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra e
as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados,
contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não
acha o despropósito.
É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não
vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume, por acaso, no
pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou,
pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar
único... Único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a
mania deles, vós sabeis muito bem o valor desta palavra, e
adivinhais, portanto, as delícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a
coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda,
se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja
o das minhas Memórias; faria a mesma coisa com o Almanaque de
Laemmert, uma vez que fosse único.
O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a
página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e
áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo
escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a
descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase
obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse.
Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol.
Um exemplar único! Nesse momento passa-lhe por baixo da janela
um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros,
fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor,
aos goles... Um exemplar único!
CAPÍTULO LXXIII / O “LUNCHEON”
O despropósito fez-me perder outro capítulo. Que melhor não era
dizer as coisas lisamente, sem todos estes solavancos! Já comparei o
meu estilo ao andar dos ébrios. Se a idéia vos parece indecorosa,
direi que ele é o que eram as minhas refeições com Virgília, na
casinha da Gamboa, onde às vezes fazíamos a nossa patuscada, o
nosso luncheon. Vinho, fruta, compotas. Comíamos, é verdade, mas
era um comer virgulado de palavrinhas doces, de olhares ternos, de
criancices, uma infinidade desses apartes do coração, aliás o
verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor. Às vezes vinha o arrufo
temperar o nímio adocicado da situação. Ela deixava-me, refugiavase
num canto do canapé, ou ia para o interior ouvir as denguices de
Dona Plácida. Cinco ou dez minutos depois, reatávamos a palestra,
como eu reato a narração, para desatá-la outra vez. Note-se que,
longe de termos horror ao método, era nosso costume convidá-lo, na
pessoa de D. Plácida, a sentar-se conosco à mesa; mas D. Plácida
não aceitava nunca.
— Você parece que não gosta mais de mim, disse-lhe um dia Virgília.
— Virgem Nossa Senhora! exclamou a boa dama alçando as mãos
para o teto. Não gosto de Iaiá! Mas então de quem é que eu gostaria
neste mundo?
E, pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, fixamente,
até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a
muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.
CAPÍTULO LXXIV / HISTÓRIA DE D. PLÁCIDA
Não te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma
confidência de D. Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias
depois, como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela
contou-me em breves termos a sua história. Era filha natural de um
sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o
pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros
trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou
dezesseis casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo
depois, deixando-lhe uma filha. Viúva e moça, ficaram a seu cargo a
filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de
sustentar a três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia
também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e
ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto
iam-se passando os anos, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
— Se eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me
teria casado; mas ninguém queria casar comigo.
Um dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém,
mais delicado que os outros, D. Plácida despediu-o do mesmo modo,
e, depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e
a escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos
anos e da necessidade; mortificava a filha para que tomasse um dos
maridos de empréstimo e de ocasião que lha pediam. E bradava:
— Queres ser melhor do que eu? Não sei donde te vêm essas fidúcias
de pessoa rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se
come vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda,
coitado... Esperas algum fidalgo, não é?
D. Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum. Era gênio.
Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e
conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e
queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa.
Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao
candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a
mãe, enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha
estava com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia
nada, a não ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. D.
Plácida vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha
de ir entregar costuras. A gente das lojas arregalava e piscava os
olhos, convencida de que ela a levava para colher marido ou outra
coisa. Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a
receber propostas de dinheiro...
Interrompeu-se um instante, e continuou logo:
— Minha filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber...
Deixou-me só, mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não
tinha ninguém mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por
esse tempo que conheci a família de Iaiá; boa gente, que me deu que
fazer, e até chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano,
mais de um ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou.
Depois vivi como Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas
mãos... E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos
dedos picadas da agulha. — Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus
sabe como é que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o
senhor doutor também... Eu tinha um medo de acabar na rua,
pedindo esmola...
Ao soltar a última frase, D. Plácida teve um calafrio. Depois, como se
tornasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela confissão ao
amante de uma mulher casada, e começou a rir, a desdizer-se, a
chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe dizia a mãe; enfim,
cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu fiquei a olhar para a
ponta do botim.
CAPÍTULO LXXV / COMIGO
Podendo acontecer que algum dos meus leitores tenha pulado o
capítulo anterior, observo que é preciso lê-lo para entender o que eu
disse comigo, logo depois que D. Plácida saiu da sala. O que eu disse
foi isto:
— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu
entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de D. Plácida.
Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe
alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de
festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção
de luxúrias vadias brotou D. Plácida. É de crer que D. Plácida não
falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores
de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e
a sacristã naturalmente lhe responderiam. — Chamamos-te para
queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não
comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando,
com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo
desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho
e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi
para isso que te chamamos, num momento de simpatia.
CAPÍTULO LXXVI / O ESTRUME
Súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito
capitular a probidade de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe,
depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era
melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de
obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a consciência; fiquei uns
dez minutos sem saber que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me
aproveitara da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-costureira,
da gratidão desta, enfim da necessidade. Notou a resistência de D.
Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os silêncios, os
olhos baixos, e a minha arte em suportar tudo isso, até vencê-la. E
repuxou-me outra vez de um modo irritado e nervoso.
Concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de D. Plácida
estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se
não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria
como tantas outras criaturas humanas; donde se poderia deduzir que
o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a
virtude seja uma flor cheirosa e sã. A consciência concordou, e eu fui
abrir a porta a Virgília.
CAPÍTULO LXXVII / ENTREVISTA
Virgília entrou risonha e sossegada. Os tempos tinham levado os
sustos e vexames. Que doce que era vê-la chegar, nos primeiros
dias, envergonhada e trêmula! Ia de sege, velado o rosto, envolvida
numa espécie de mantéu, que lhe disfarçava as ondulações do talhe.
Da primeira vez deixou-se cair no canapé, ofegante, escarlate, com
os olhos no chão; e, palavra! em nenhuma outra ocasião a achei tão
bela, talvez porque nunca me senti mais lisonjeado.
Agora, porém, como eu dizia, tinham acabado os sustos e vexames;
as entrevistas entravam no período cronométrico. A intensidade do
amor era a mesma; a diferença é que a chama perdera o tresloucado
dos primeiros dias para constituir-se um simples feixe de raios,
tranqüilo e constante, como nos casamentos.
— Estou muito zangada com você, disse ela sentando-se.
— Por quê?
— Por que não foi lá ontem, como me tinha dito. O Damião
perguntou muitas vezes se você não iria, ao menos, tomar chá. Por
que é que não foi?
Com efeito, eu havia faltado à palavra que dera, e a culpa era toda
de Virgília. Questão de ciúmes. Essa mulher esplêndida sabia que o
era, e gostava de o ouvir dizer, fosse em voz alta ou baixa. Na
antevéspera, em casa da baronesa, valsara duas vezes com o mesmo
peralta, depois de lhe escutar as cortesanices, ao canto de uma
janela. Estava tão alegre! tão derramada! tão cheia de si! Quando
descobriu, entre as minhas sobrancelhas, a ruga interrogativa e
ameaçadora, não teve nenhum sobressalto, nem ficou subitamente
séria; mas deitou ao mar o peralta e as cortesanices. Veio depois a
mim, tomou-me o braço, e levou-me a outra sala, menos povoada,
onde se me queixou de cansaço, e disse muitas outras coisas, com o
ar pueril que costumava ter, em certas ocasiões, e eu ouvi-a quase
sem responder nada.
Agora mesmo, custava-me responder alguma coisa, mas enfim
contei-lhe o motivo da minha ausência... Não, eternas estrelas,
nunca vi olhos mais pasmados. A boca semi-aberta, as sobrancelhas
arqueadas, uma estupefação visível, tangível, que se não podia
negar, tal foi a primeira réplica de Virgília; abanou a cabeça com um
sorriso de piedade e ternura, que inteiramente me confundiu.
— Ora, você!
E foi tirar o chapéu, lépida, jovial como a menina que torna do
colégio; depois veio a mim, que estava sentado, deu-me pancadinha
na testa, com um só dedo, a repetir: — Isto, isto; — e eu não tive
remédio senão rir também, e tudo acabou em galhofa. Era claro que
me enganara.
CAPÍTULO LXXVIII / A PRESIDÊNCIA
Certo dia, meses depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que
iria talvez ocupar uma presidência de província. Olhei para Virgília,
que empalideceu; ele, que a viu empalidecer, perguntou-lhe:
— A modo que não gostaste, Virgília?
Virgília abanou a cabeça.
— Não me agrada muito, foi a sua resposta.
Não se disse mais nada; mas de noite Lobo Neves insistiu no projeto
um pouco mais resolutamente do que de tarde; dois dias depois
declarou à mulher que a presidência era coisa definitiva. Virgília não
pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O marido
respondia a tudo com as necessidades políticas.
— Não posso recusar o que me pedem; é até conveniência nossa, do
nosso futuro, dos teus brasões, meu amor, porque eu prometi que
serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que sou ambicioso?
Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas
da ambição.
Virgília ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da
Gamboa, à minha espera; tinha dito tudo a D. Plácida, que buscava
consolá-la como podia. Não fiquei menos abatido.
— Você há de ir conosco, disse-me Virgília.
— Está doida? Seria uma insensatez.
— Mas então...?
— Então, é preciso desfazer o projeto.
— É impossível.
— Já aceitou?
— Parece que sim.
Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um
lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não
achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que estava sentada, e
travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.
— Nesta pequenina mão está toda a minha existência, disse eu; você
é responsável por ela; faça o que lhe parecer.
Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo
fronteiro. Decorreram alguns instantes de silêncio; ouvíamos
somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água, que morria
na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os olhos
no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com
os dedos cruzados, na atitude da suprema desesperança. Noutra
ocasião, por diferente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés
dela, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora,
porém, era preciso compeli-la ao esforço de si mesma, ao sacrifício, à
responsabilidade da nossa vida comum, e conseguintemente
desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz.
— Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos, disse eu.
Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a
ouvir um prorromper de lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de
voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí.
CAPÍTULO LXXIX / COMPROMISSO
Não acabaria se houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas
primeiras horas. Vacilava entre um querer e um não querer, entre a
piedade que me empuxava à casa de Virgília e outro sentimento, —
egoísmo, supunhamos, — que me dizia: — Fica; deixa-a a sós com o
problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor. Creio que
essas duas forças tinham igual intensidade, investiam e resistiam ao
mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia
definitivamente. Às vezes sentia um dentezinho de remorso; pareciame
que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem
nada sacrificar nem arriscar de mim próprio; e, quando ia a capitular,
vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoísta, e eu ficava
irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista me
levasse a compartir a responsabilidade da solução.
Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu
iria vê-la em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe
não dizer nada, à véspera do efeito da minha intimação. Deste modo
poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me
parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era
ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília
não passava de uma sugestão de meu próprio padecimento.
CAPÍTULO LXXX / DE SECRETÁRIO
Na noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Neves; estavam
ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial. Juro que ela sentiu certo
alívio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade
e ternura. Lobo Neves contou-me os planos que levava para a
presidência, as dificuldades locais, as esperanças, as resoluções;
estava tão contente! tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa, fingia
ler um livro, mas por cima da página olhava-me de quando em
quando, interrogativa e ansiosa.
— O pior, disse-me de repente o Lobo Neves, é que ainda não achei
secretário.
— Não?
— Não, e tenho uma idéia.
— Ah!
— Uma idéia... Quer você dar um passeio ao Norte?
Não sei o que lhe disse.
— Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado;
mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário comigo.
Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma
serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente,
imperiosamente a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto...
Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto
era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei,
e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o
olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim,
que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário,
era resolver as coisas de um modo administrativo.
CAPÍTULO LXXXI / A RECONCILIAÇÃO
Contudo, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não
ia expor insanamente a reputação de Virgília, se não haveria outro
meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No
dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito feito e
resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me
que estava na sala uma senhora, coberta com um véu. Corro; era
minha irmã Sabina.
— Isto não pode continuar assim, disse ela; é preciso que, de uma
vez por todas, façamos as pazes. Nossa família está acabando; não
havemos de ficar como dois inimigos.
— Mas se eu não te peço outra coisa, mana! bradei estendendo-lhe
os braços.
Sentei-a ao pé de mim, falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de
tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido
viria mostrar-ma, se eu consentisse.
— Ora essa! irei eu mesmo vê-la.
— Sim?
— Palavra.
— Tanto melhor! respirou Sabina. É tempo de acabar com isto.
Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte anos, e
contava mais de trinta. Graciosa, afável, nenhum acanhamento,
nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro, com as mãos
seguras, falando de tudo e de nada, como dois namorados. Era
minha infância que ressurgia, fresca, travessa e loura; os anos iam
caindo como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu
brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa
família, as nossas festas. Suportei a recordação com algum esforço;
mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se de zangarrear na clássica
rabeca, e essa voz — porque até então a recordação era muda —
essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu,
que...
Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e
mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de
minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com sinceridade... Súbito,
ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco anos.
— Entra, Sara, disse Sabina.
Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a
pequena, espantada, empurrava-me o ombro com a mãozinha,
quebrando o corpo para descer... Nisto, aparece-me à porta um
chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu
estava tão comovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do
pai. Talvez essa efusão o desconcertou um pouco; é certo que me
pareceu acanhado. Simples prólogo. Daí a pouco falávamos como
bons amigos velhos. Nenhuma alusão ao passado, muitos planos de
futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro. Não deixei de
dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta
interrupção, porque eu andava com idéias de uma viagem ao Norte.
Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim para Sabina; ambos
concordaram que essas idéias não tinham senso comum. Que diacho
podia eu achar no Norte? Pois não era na corte, em plena corte, que
devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo?
Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim,
acompanhava-me de longe, e, não obstante uma briga ridícula, teve
sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que
se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de
louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns meses
na província, sem necessidade, sem motivo sério? A menos que não
fosse política...
— Justamente política, disse eu.
— Nem assim, replicou ele daí a um instante. — E depois de outro
silêncio: — Seja como for, venha jantar hoje conosco.
— Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar
comigo.
— Não sei, não sei, objetou Sabina; casa de homem solteiro... Você
precisa casar, mano. Também eu quero uma sobrinha, ouviu?
Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa;
a reconciliação de uma família vale bem um gesto enigmático.
CAPÍTULO LXXXII / QUESTÃO DE BOTÂNICA
Digam o que quiserem dizer os hipocondríacos: a vida é uma coisa
doce. Foi o que eu pensei comigo, ao ver Sabina, o marido e a filha
descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras afetuosas
para cima, onde eu ficava — no patamar, — a dizer-lhes outras
tantas para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz.
Amava-me uma mulher, tinha a confiança do marido, ia por
secretário de ambos, reconciliava-me com os meus. Que podia
desejar mais, em vinte e quatro horas?
Nesse mesmo dia, tratando de aparelhar os ânimos, comecei a
espalhar que talvez fosse para o Norte como secretário de província,
a fim de realizar certos desígnios políticos, que me eram pessoais.
Disse-o na Rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no
teatro. Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo Neves, que já
andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no
ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o
amor da escultura. Referia-se às belas formas de Virgília.
Mas a alusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina,
três dias depois. Fê-la um certo Garcez, velho cirurgião, pequenino,
trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos
noventa anos, sem adquirir jamais aquela compostura austera, que é
a gentileza do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e
derradeira surpresa da natureza humana.
— Já sei, desta vez vai ler Cícero, disse-me ele, ao saber da viagem.
— Cícero! exclamou Sabina.
— Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de
relance. Olhe que é Virgílio, e não Virgília... não confunda...
E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina olhou para mim,
receosa de alguma réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou
o rosto para disfarçá-lo. As outras pessoas olhavam-me com um ar
de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que não
acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores
andava mais público do que eu podia supor. Entretanto sorri, um
sorriso curto, fugitivo e guloso, — palreiro como as pegas de Sintra.
Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro!
Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão
aos nossos amores; mas, palavra de honra! sentia cá dentro uma
impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir,
e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí alguém que
explique o fenômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o
contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso,
mas abotoado; andando o tempo, desabotoou-se em flor, e apareceu
aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.
CAPÍTULO LXXXIII / 13
Cotrim tirou-me daquele gozo, levando-me à janela. — Você quer
que lhe diga uma coisa? perguntou ele; — não faça essa viagem; é
insensata, é perigosa.
— Por quê?
— Você bem sabe por que, tornou ele: é, sobretudo, perigosa, muito
perigosa. Aqui na corte, um caso desses perde-se na multidão da
gente e dos interesses; mas na província muda de figura; e tratandose
de personagens políticos, é realmente insensatez. As gazetas de
oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com
todas as letras, e aí virão as chufas, os remoques, as alcunhas...
— Mas não entendo...
— Entende, entende. Em verdade, seria bem pouco amigo nosso, se
me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso há longos meses.
Repito, não faça semelhante viagem; suporte a ausência, que é
melhor, e evite algum grande escândalo e maior desgosto...
Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no
lampião da esquina, — um antigo lampião de azeite, — triste,
obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que me
cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou
lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não
embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As
palavras do Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um
modo muito diverso do das palavras do Garcez. Talvez Cotrim tivesse
razão; mas podia eu separar-me de Virgília?
Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em que estava pensando.
Respondi que em coisa nenhuma, que tinha sono e ia para casa.
Sabina esteve um instante calada. — O que você precisa, sei eu; é
uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você. Saí de
lá opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar, — espírito e
coração, — e eis aí me surge esse porteiro das conveniências, que
me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com
elas a constituição, o corpo legislativo, o ministério, tudo.
No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por
decretos de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretário da
província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi imediatamente a Virgília,
e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Plácida!
Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se esqueceríamos a nossa
velha, se a ausência era grande e se a província ficava longe.
Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção de
Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma
andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito séria.
— Que aconteceu?
— Vacilo, disse eu; não sei se devo aceitar...
Virgília deixou-se cair, no canapé, a rir. — Por quê? disse ela.
— Não é conveniente, dá muito na vista...
— Mas nós não já vamos.
— Como assim?
Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só
lhe disse, a ela, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessá-lo
a ninguém mais. — É pueril, observou ele, é ridículo; mas em suma,
é um motivo poderoso para mim. Referiu-lhe que o decreto trazia a
data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação
fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em
que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o n.°
13. Et coetera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar
semelhante coisa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares
para não aceitar. Eu fiquei como há de estar o leitor, — um pouco
assombrado com esse sacrifício a um número; mas, sendo ele
ambicioso, o sacrifício devia ser sincero...
CAPÍTULO LXXXIV / O CONFLITO
Número fatídico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim
também as virgens ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de
ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de Pelópidas, — uma
donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe
desse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa,
não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas,
não é impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número
fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a
causa da recusa; disse-me também que eram negócios particulares,
e o rosto sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à
dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza
profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa,
a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com
estrépito e afetação. Oprimiam-no duas coisas, — a ambição, que um
escrúpulo desasara, e logo depois a dúvida, e talvez o
arrependimento, — mas um arrependimento, que viria outra vez, se
repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava
da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um
sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno
digno de alguma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D.
Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o
ar.
— Que tem isso? perguntava-lhe eu.
— Faz mal, era a sua resposta.
Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete
selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e
ela contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia mesma
coisa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo; aí sabia
perfeitamente que era caso de criar uma verruga.
Ou verruga ou outra coisa, que valia isso, para quem não perde uma
presidência de província? Tolera-se uma superstição gratuita ou
barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso
do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido
ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou
nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos
políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal,
comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes;
enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a oposição.
Clique aqui para ler do capítulo 13 ao capítulo 30
Clique aqui para ler do capítulo 31 ao capítulo 58
Clique aqui para ler do capítulo 59 ao capítulo 84
Clique aqui para ler do capítulo 85 ao capítulo 116
Clique aqui para ler do capítulo 117 ao capítulo 152
Clique aqui para ler do capítulo 153 ao capítulo 160
Clique aqui para ler do capítulo 1 ao capítulo 12