- accunha
6 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - capítulos 117 a 152
Atualizado: 21 de Ago de 2019
CAPÍTULO CXVII / O HUMANITISMO
Duas forças, porém, além de uma terceira, compeliam-me a tornar à
vida agitada do costume: Sabina e Quincas Borba. Minha irmã
encaminhou a candidatura conjugal de Nhã-loló de um modo
verdadeiramente impetuoso. Quando dei por mim estava com a moça
quase nos braços. Quanto ao Quincas Borba, expôs-me enfim o
Humanitismo, sistema de filosofia destinado a arruinar todos os
demais sistemas.
— Humanitas, dizia ele, o princípio das coisas, não é outro senão o
mesmo homem repartido por todos os homens. Conta três fases
Humanitas: a estática, anterior a toda a criação; a expansiva,
começo das coisas; a dispersiva, aparecimento do homem; e contará
mais uma, a contrativa, absorção do homem e das coisas. A
expansão, iniciando o universo, sugeriu a Humanitas o desejo de o
gozar, e daí a dispersão, que não é mais do que a multiplicação
personificada da substância original.
Como me não aparecesse assaz clara esta exposição, Quincas Borba
desenvolveu-a de um modo profundo, fazendo notar as grandes
linhas do sistema. Explicou-me que, por um lado, o Humanitismo
ligava-se ao Bramanismo, a saber, na distribuição dos homens pelas
diferentes partes do corpo de Humanitas; mas aquilo que na religião
indiana tinha apenas uma estreita significação teológica e política, era
no Humanitismo a grande lei do valor pessoal. Assim, descender do
peito ou dos rins de Humanitas, isto é, ser um forte, não era o
mesmo que descender dos cabelos ou da ponta do nariz. Daí a
necessidade de cultivar e temperar o músculo. Hércules não foi senão
um símbolo antecipado do Humanitismo. Neste ponto Quincas Borba
ponderou que o paganismo poderia ter chegado à verdade, se se não
houvesse amesquinhado com a parte galante dos seus mitos. Nada
disso acontecerá com o Humanitismo. Nesta igreja nova não há
aventuras fáceis, nem quedas, nem tristezas, nem alegrias pueris. O
amor, por exemplo, é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a
vida é o maior benefício do universo, e não há mendigo que não
prefira a miséria à morte (o que é um delicioso influxo de
Humanitas), segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma
ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa espiritual.
Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.
— Imagina, por exemplo, que eu não tinha nascido, continuou o
Quincas Borba; é positivo que não teria agora o prazer de conversar
contigo, comer esta batata, ir ao teatro, e para tudo dizer numa só
palavra: viver. Nota que eu não faço do homem um simples veículo
de Humanitas; não, ele é ao mesmo tempo veículo, cocheiro e
passageiro; ele é o próprio Humanitas reduzido; daí a necessidade de
adorar-se a si próprio. Queres uma prova da superioridade do meu
sistema? Contempla a inveja. Não há moralista grego ou turco,
cristão ou muçulmano, que não troveje contra o sentimento da
inveja. O acordo é universal, desde os campos da Iduméia até o alto
da Tijuca. Ora bem; abre mão dos velhos preconceitos, esquece as
retóricas rafadas, e estuda a inveja, esse sentimento tão sutil e tão
nobre. Sendo cada homem uma redução de Humanitas, é claro que
nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem,
quaisquer que sejam as aparências contrárias. Assim, por exemplo, o
algoz que executa o condenado pode excitar o vão clamor dos
poetas; mas substancialmente é Humanitas que corrige em
Humanitas uma infração da lei de Humanitas. O mesmo direi do
indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de
Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente
estripado. Se entendeste bem, facilmente compreenderás que a
inveja não é senão uma admiração que luta, e sendo a luta a grande
função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos são os
mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma
virtude.
Para que negá-lo? eu estava estupefato. A clareza da exposição, a
lógica dos princípios, o rigor das conseqüências, tudo isso parecia
superiormente grande, e foi-me preciso suspender a conversa por
alguns minutos, enquanto digeria a filosofia nova. Quincas Borba mal
podia encobrir a satisfação do triunfo. Tinha uma asa de frango no
prato, e trincava-a com filosófica serenidade. Eu fiz-lhe ainda
algumas objeções, mas tão frouxas, que ele não gastou muito tempo
em destruí-las.
— Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não
esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada
homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma
operação conveniente, como se disséssemos o estalar dos dedos de
Humanitas; a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a
fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas
eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema,
senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado por
um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse
africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio
construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens,
levado por velas, que oito ou dez homens teceram, sem contar a
cordoalha e outras partes do aparelho náutico. Assim, este frango,
que eu almocei agora mesmo, é o resultado de uma multidão de
esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu
apetite.
Entre o queijo e o café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu
sistema era a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é
uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada por um pau, antes
mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa
predisposição, é que constitui a base da ilusão humana, herdada e
transmitida. Não basta certamente a adoção do sistema para acabar
logo com a dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução das
coisas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele é o
próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à
substância original para obstar qualquer sensação dolorosa. A
evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar
alguns milhares de anos.
Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro
volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e
citações latinas. O último volume compunha-se de um tratado
político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha
do sistema, posto que concebida com um formidável rigor de lógica.
Reorganizada a sociedade pelo método dele, nem por isso ficavam
eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a facada
anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos
flagelos verdadeiros equívocos do entendimento, porque não
passariam de movimentos externos da substância interior, destinados
a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da
monotonia universal, claro estava que a sua existência não impediria
a felicidade humana. Mas ainda quando tais flagelos (o que era
radicalmente falso) correspondessem no futuro à concepção
acanhada de antigos tempos, nem por isso ficava destruído o
sistema, e por dois motivos: 1.° porque sendo Humanitas a
substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior
delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2.°
porque, ainda assim, não diminuiria o poder espiritual do homem
sobre a Terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como as
estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss, dizia-me ele ao
fechar o livro, não era tão tolo como o pintou Voltaire.
CAPÍTULO CXVIII / A TERCEIRA FORÇA
A terceira força que me chamava ao bulício era o gosto de luzir, e,
sobretudo, a incapacidade de viver só. A multidão atraía-me, o
aplauso namorava-me. Se a idéia do emplasto me tem aparecido
nesse tempo, quem sabe? não teria morrido logo e estaria célebre.
Mas o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me em alguma
coisa, com alguma coisa e por alguma coisa.
CAPÍTULO CXIX / PARÊNTESES
Quero deixar aqui, entre parêntesis, meia dúzia de máximas das
muitas que escrevi por esse tempo. São bocejos de enfado; podem
servir de epígrafe a discursos sem assunto:
* * *
Suporta-se com paciência a cólica do próximo.
* * *
Matamos o tempo; o tempo nos enterra.
* * *
Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da
carruagem seria diminuto, se todos andassem de
carruagem.
* * *
Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.
* * *
Não se compreende que um botocudo fure o beiço para
enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de
um joalheiro.
* * *
Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes
cair das nuvens, que de um terceiro andar.
CAPÍTULO CXX / “COMPELLE INTRARE”
— Não, senhor, agora quer você queira, quer não, há de casar, disseme
Sabina. Que belo futuro! Um solteirão sem filhos.
Sem filhos! A idéia de ter filhos deu-me um sobressalto; percorreume
outra vez o fluido misterioso. Sim, cumpria ser pai. A vida
celibata podia ter certas vantagens próprias, mas seriam tênues, e
compradas a troco da solidão. Sem filhos! Não; impossível. Dispusme
a aceitar tudo, ainda a aliança do Damasceno. Sem filhos! Como
já então depositasse grande confiança em Quincas Borba, fui ter com
ele e expus-lhe os movimentos internos da minha paternidade. O
filósofo ouviu-me com alvoroço; declarou-me que Humanitas se
agitava em meu seio; animou-me ao casamento, ponderou que eram
mais alguns convivas que batiam à porta, etc. Compelle intrare, como
dizia Jesus. E não me deixou sem provar que o apólogo evangélico
não era mais do que um prenúncio do Humanitismo, erradamente
interpretado pelos padres.
CAPÍTULO CXXI / MORRO ABAIXO
No fim de três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos
da moça, os desejos do pai, eram outros tantos impulsos que me
levavam ao matrimônio. A lembrança de Virgília aparecia de quando
em quando, à porta, e com ela um diabo negro que me metia à cara
um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas;
mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se
refletia a figura de Nhã-loló, terna, luminosa, angélica.
Não falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até que os deitara
fora, certo domingo, em que fui à missa na capela do Livramento.
Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os
muitas vezes à missa. O morro estava ainda nu de habitações, salvo
o velho palacete do alto, onde era a capela. Pois um domingo, ao
descer com Nhã-loló pelo braço, não sei que fenômeno se deu que fui
deixando aqui dois anos, ali quatro, logo adiante cinco, de maneira
que, quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tão
lépidos como tinham sido.
Agora, se querem saber em que circunstância se deu o fenômeno,
basta-lhes ler este capítulo até o fim. Vínhamos da missa, ela, o pai e
eu. No meio do morro achamos um grupo de homens. Damasceno,
que vinha ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se
alvoroçado; nós fomos atrás dele. E vimos isto: homens de todas as
idades, tamanhos e cores, uns em mangas de camisa, outros de
jaqueta, outros metidos em sobrecasacas esfrangalhadas; atitudes
diversas, uns de cócaras, outros com as mãos apoiadas nos joelhos,
estes sentados em pedras, aqueles encostados ao muro, e todos com
os olhos fixos no centro, e as almas debruçadas das pupilas.
— Que é? perguntou-me Nhã-loló.
Fiz-lhe sinal que se calasse; abri sutilmente caminho, e todos me
foram cedendo espaço, sem que positivamente ninguém me visse. O
centro tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de galos. Vi os dois
contendores, dois galos de esporão agudo, olho de fogo e bico afiado.
Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro
estava desplumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda
assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste,
golpe daquele, vibrantes e raivosos. Damasceno não sabia mais
nada; o espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe
disse que era tempo de descer; ele não respondia, não ouvia,
concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas paixões.
Foi nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço,
dizendo que nos fôssemos embora. Aceitei o conselho e vim com ela
por ali abaixo. Já disse que o morro era então desabitado; disse-lhes
também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que chovia,
era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte
que eu abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e
inclinei-o por modo que ajuntei uma página à filosofia do Quincas
Borba: Humanitas osculou Humanitas... Foi assim que os anos me
vieram caindo pelo morro abaixo.
Ao sopé detivemo-nos alguns minutos, à espera de Damasceno; ele
veio daí a pouco rodeado dos apostadores, a comentar com eles a
briga. Um destes, tesoureiro das apostas, distribuía um velho maço
de notas de dez tostões, que os vencedores recebiam duplamente
alegres. Quanto aos galos vinham sobraçados pelo respectivo dono.
Um deles trazia a crista tão comida e ensangüentada, que vi logo
nele o vencido; mas era engano, — o vencido era o outro, que não
trazia crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a
custo, esfalfados. Os apostadores, ao contrário, vinham alegres, sem
embargo das fortes comoções da luta; biografavam os contendores,
relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló
vexadíssima.
CAPÍTULO CXXII / UMA INTENÇÃO MUITO FINA
O que vexava a Nhã-loló era o pai. A facilidade com que ele se
metera com os apostadores punha em relevo antigos costumes e
afinidades sociais, e Nhã-loló chegara a temer que tal sogro me
parecesse indigno. Era notável a diferença que ela fazia de si mesma;
estudava-se e estudava-me. A vida elegante e polida atraía-a,
principalmente porque lhe parecia o meio mais seguro de ajustar as
nossas pessoas. Nhã-loló observava, imitava, adivinhava; ao mesmo
tempo dava-se ao esforço de mascarar a inferioridade da família.
Naquele dia, porém, a manifestação do pai foi tamanha que a
entristeceu grandemente. Eu busquei então diverti-la do assunto,
dizendo-lhe muitas chanças e motes de bom-tom; vãos esforços, que
não a alegravam mais. Era tão profundo o abatimento, tão expressivo
o desânimo, que cheguei a atribuir a Nhã-loló a intenção positiva de
separar, no meu espírito, a sua causa da causa do pai. Este
sentimento pareceu-me de grande elevação; era uma afinidade mais
entre nós.
— Não há remédio, disse eu comigo, vou arrancar esta flor a este
pântano.
CAPÍTULO CXXIII / O VERDADEIRO COTRIM
Não obstante os meus quarenta e tantos anos, como eu amasse a
harmonia da família, entendi não tratar o casamento sem primeiro
falar ao Cotrim. Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que não
tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum
interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nhã-loló; por isso
calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim
verdadeira paixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria
negativo. Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas
qualidades, — não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e
pelo que respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era
noiva excelente; mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo.
— Lavo inteiramente as mãos, concluiu ele.
— Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes...
— Isso é outro negócio. Acho que é indispensável casar,
principalmente tendo ambições políticas. Saiba que na política o
celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter voto,
não quero, não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina
foi além, fazendo-lhe certas confidências, segundo me disse; mas em
todo caso ela não é tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas
não... não digo...
— Diga.
— Não; não digo nada.
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber
que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui
injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de
meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e
cuide que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de
uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é
o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha
inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado
neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao
calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que
ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo
longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo
modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio
requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um
homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o
Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos,
e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses;
prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma
confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remido de uma
destas, o que não se coaduna muito com a reputação da avareza;
verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que
ele fora juiz) mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito,
decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a
notícia de um ou outro benefício que praticava, — sestro repreensível
ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as
boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não
pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior
elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses
benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se
tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma
condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções,
mas não devia um real a ninguém.
CAPÍTULO CXXIV / VÁ DE INTERMÉDIO
Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu
não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo,
assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio,
pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro,
senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu;
digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é
pinturesca. E repito: não é meu.
CAPÍTULO CXXV / EPITÁFIO
________________________
AQUI JAZ
D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO
MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE
ORAI POR ELA!
________________________
CAPÍTULO CXXVI / DESCONSOLAÇÃO
O epitáfio diz tudo. Vale mais do que se lhes narrasse a moléstia de
Nhã-loló, a morte, o desespero da família, o enterro. Ficam sabendo
que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada da
febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até
o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que
talvez não a amasse deveras.
Vejam agora a que excessos pode levar uma inadvertência; doeu-me
um pouco a cegueira da epidemia que, matando à direita e à
esquerda, levou também uma jovem dama, que tinha de ser minha
mulher; não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos
ainda daquela morte. Creio até que esta me pareceu ainda mais
absurda que todas as outras mortes. Quincas Borba, porém,
explicou-me que epidemias eram úteis à espécie, embora desastrosas
para uma certa porção de indivíduos; fez-me notar que, por mais
horrendo que fosse o espetáculo, havia uma vantagem de muito
peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntar-me se,
no meio do luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter
escapado às garras da peste; mas esta pergunta era tão insensata,
que ficou sem resposta.
Se não contei a morte, não conto igualmente a missa do sétimo dia.
A tristeza do Damasceno era profunda; esse pobre homem parecia
uma ruína. Quinze dias depois estive com ele; continuava
inconsolável, e dizia que a dor grande com que Deus o castigara fora
ainda aumentada com a que lhe infligiram os homens. Não me disse
mais nada. Três semanas depois tornou ao assunto, e então
confessou-me que, no meio do desastre irreparável, quisera ter a
consolação da presença dos amigos. Doze pessoas apenas, e três
quartas partes amigos do Cotrim, acompanharam à cova o cadáver
de sua querida filha. E ele fizera expedir oitenta convites. Pondereilhe
que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar essa
desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo
incrédulo e triste.
— Qual! gemia ele, desampararam-me.
Cotrim, que estava presente:
— Vieram os que deveras se interessam por você e por nós. Os
oitenta viriam por formalidade, falariam da inércia do governo, das
panacéias dos boticários, do preço das casas, ou uns dos outros...
Damasceno ouviu calado, abanou outra vez a cabeça, e suspirou:
— Mas viessem!
CAPÍTULO CXXVII / FORMALIDADE
Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o
dom de achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o
talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica; eu a agradeço
ainda agora do fundo do meu sepulcro.
De fato, o homem vulgar que ouvisse a última palavra do Damasceno
não se lembraria dela, quando, tempos depois, houvesse de olhar
para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembreime.
Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos
de rua, cara tapada, não com um espesso pano que as cobrisse
deveras, mas com um véu tenuíssimo, que simulava descobrir
somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei
graça a essa esperteza da faceirice muçulmana, que assim esconde o
rosto, — e cumpre o uso, — mas não o esconde, — e divulga a
beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas e o
Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e
duvido muito que me negues isso), compreenderás que, tanto num
como noutro caso, surge aí a orelha de uma rígida e meiga
companheira do homem social...
Amável Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o bálsamo dos
corações, a medianeira entre os homens, o vínculo da Terra e do
Céu; tu enxugas as lágrimas de um pai, tu captas a indulgência de
um Profeta. Se a dor adormece, e a consciência se acomoda, a quem,
senão a ti, devem esse imenso benefício? A estima que passa de
chapéu na cabeça não diz nada à alma; mas a indiferença que corteja
deixa-lhe uma deleitosa impressão. A razão é que, ao contrário de
uma velha fórmula absurda, não é a letra que mata; a letra dá vida;
o espírito é que é objeto de controvérsia, de dúvida, de interpretação
e conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amável Formalidade,
para sossego do Damasceno e glória de Muamede.
CAPÍTULO CXXVIII / NA CÂMARA
E notai bem que eu vi a gravura turca, dois anos depois das palavras
de Damasceno, e vi-a na Câmara dos Deputados, em meio de grande
burburinho, enquanto um deputado discutia um parecer da comissão
do orçamento, sendo eu também deputado. Para quem há lido este
livro é escusado encarecer a minha satisfação, e para os outros é
igualmente inútil. Era deputado, e vi a gravura turca, recostado na
minha cadeira, entre um colega, que contava uma anedota, e outro,
que tirava a lápis, nas costas de uma sobrecarta, o perfil de orador.
O orador era o Lobo Neves. A onda da vida trouxe-nos à mesma
praia, como duas botelhas de náufragos, ele contendo o seu
ressentimento, eu devendo conter o meu remorso; e emprego esta
forma suspensiva, dubitativa ou condicional, para o fim de dizer que
efetivamente não continha nada, a não ser a ambição de ser
ministro.
CAPÍTULO CXXIX / SEM REMORSOS
Não tinha remorsos. Se possuísse os aparelhos próprios, incluía neste
livro uma página de química, porque havia de decompor o remorso
até os mais simples elementos, com o fim de saber de um modo
positivo e concludente por que razão Aquiles passeia à roda de Tróia
o cadáver do adversário, e lady Macbeth passeia à volta da sala a sua
mancha de sangue. Mas eu não tenho aparelhos químicos, como não
tinha remorsos; tinha vontade de ser ministro de Estado. Contudo, se
hei de acabar este capítulo, direi que não quisera ser Aquiles nem
lady Macbeth; e que, a ser alguma coisa, antes Aquiles, antes
passear ovante o cadáver do que a mancha; ouvem-se no fim as
súplicas de Príamo, e ganha-se uma bonita reputação militar e
literária. Eu não ouvia as súplicas de Príamo, mas o discurso do Lobo
Neves, e não tinha remorsos.
CAPÍTULO CXXX / PARA INTERCALAR NO CAP. CXXIX
A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi
num baile em 1855. Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e
ostentava às luzes o mesmo par de ombros de outro tempo. Não era
a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava
formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembrame
que falamos muito, sem aludir a coisa nenhuma do passado.
Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou então um olhar, e
mais nada. Pouco depois retirou-se; eu fui vê-la descer as escadas, e
não sei por que fenômeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me
os filólogos essa frase bárbara) murmurei comigo esta palavra
profundamente retrospectiva:
“Magnífica!”
Convém intercalar este capítulo entre a primeira oração e a segunda
do capítulo CXXIX.
CAPÍTULO CXXXI / DE UMA CALÚNIA
Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloquo-cerebral,
— o que era simples opinião e não remorso, — senti que alguém me
punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro,
oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele
sorriu maliciosamente, e disse-me:
— “Seu” maganão! Recordações do passado, hein?
— Viva o passado!
— Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
— Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, — principalmente a
última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as
mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro
sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura
amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um
modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam
por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A
razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI
e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal,
ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou
polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas;
mas o homem, — falo do homem de uma sociedade culta e elegante,
— o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso
(e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro
homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de
dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o
homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem,
fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos
ríspido e menos secreto, — essa boa fatuidade, que é a transpiração
luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar
escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das
mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo
menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por
desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos
olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha
de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a
aventura amorosa vinha descobrir-se por força, mais tarde ou mais
cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos
o latir”.
CAPÍTULO CXXXII / QUE NÃO É SÉRIO
Citando o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso
povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma
perguntar-lhe: “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?” como se
dissesse: — “quem lhe levou os amores, as aventuras secretas, etc.”
Mas este capítulo não é sério.
CAPÍTULO CXXXIII / O PRINCÍPIO DE HELVETIUS
Estávamos no ponto em que o oficial de marinha me arrancou a
confissão dos amores de Virgília, e aqui emendo eu o princípio de
Helvetius, — ou, por outra, explico-o. O meu interesse era calar;
confirmar a suspeita de uma coisa antiga fora provocar algum ódio
sopitado, dar origem a um escândalo, quando menos adquirir a
reputação de indiscreto. Era esse o interesse; e entendendo-se o
princípio de Helvetius de um modo superficial, isso é o que devia ter
feito. Mas eu já dei o motivo da indiscrição masculina: antes daquele
interesse de segurança, havia outro, o do desvanecimento, que é
mais íntimo, mais imediato: o primeiro era reflexivo, supunha um
silogismo anterior; o segundo era espontâneo, instintivo, vinha das
entranhas do sujeito; finalmente, o primeiro tinha o efeito remoto, o
segundo próximo. Conclusão: o princípio de Helvetius é verdadeiro no
meu caso; — a diferença é que não era o interesse aparente, mas o
recôndito.
CAPÍTULO CXXXIV / CINQÜENTA ANOS
Não lhes disse ainda, — mas digo-o agora, — que quando Virgília
descia a escada, e o oficial de marinha me tocava no ombro, tinha eu
cinqüenta anos. Era portanto a minha vida que descia pela escada
abaixo, — ou a melhor parte, ao menos, uma parte cheia de
prazeres, de agitações, de sustos, — capeada de dissimulação e
duplicidade, — mas enfim a melhor, se devemos falar a linguagem
usual. Se, porém, empregarmos outra mais sublime, a melhor parte
foi a restante, como eu terei a honra de lhes dizer nas poucas
páginas deste livro.
Cinqüenta anos! Não era preciso confessá-lo. Já se vai sentindo que o
meu estilo não é tão lesto como nos primeiros dias. Naquela ocasião,
cessado o diálogo com o oficial de marinha, que enfiou a capa e saiu,
confesso que fiquei um pouco triste. Voltei à sala, lembrou-me dançar
uma polca, embriagar-me das luzes, das flores, dos cristais, dos
olhos bonitos, e do burburinho surdo e ligeiro das conversas
particulares. E não me arrependo; remocei. Mas, meia hora depois,
quando me retirei do baile, às quatro da manhã, o que é que fui
achar no fundo do carro? Os meus cinqüenta anos. Lá estavam eles
os teimosos, não tolhidos de frio, nem reumáticos, — mas cochilando
a sua fadiga, um pouco cobiçosos de cama e de repouso. Então, — e
vejam até que ponto pode ir a imaginação de um homem, com sono,
— então pareceu-me ouvir de um morcego escarapitado no tejadilho:
Sr. Brás Cubas, a rejuvenescência estava na sala, nos cristais, nas
luzes, nas sedas, — enfim, nos outros.
CAPÍTULO CXXXV / “OBLIVION”
E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha
o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o interesse da
minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda a invalidez,
mas já não é a frescura. Venham mais dez, e eu entenderei o que um
inglês dizia, entenderei que “coisa é não achar já quem se lembre de
meus pais, e de que modo me há de encarar o próprio
ESQUECIMENTO”.
Vai em versaletes esse nome. OBLIVION! Justo é que se dêem todas
as honras a um personagem tão desprezado e tão digno, conviva da
última hora, mas certo. Sabe-o a dama que luziu na aurora do atual
reinado, e mais dolorosamente a que ostentou suas graças em flor
sob o ministério Paraná, porque esta acha-se mais perto do triunfo, e
sente já que outras lhe tomaram o carro. Então, se é digna de si
mesma, não teima em espertar a lembrança morta ou expirante; não
busca no olhar de hoje a mesma saudação do olhar de ontem,
quando eram outros os que encetavam a marcha da vida, de alma
alegre e pé veloz. Tempora mutantur. Compreende que este turbilhão
é assim mesmo, leva as folhas do mato e os farrapos do caminho,
sem exceção nem piedade; e se tiver um pouco de filosofia, não
inveja, mas lastima as que lhe tomaram o carro, porque também elas
hão de ser apeadas pelo estribeiro OBLIVION. Espetáculo, cujo fim é
divertir o planeta Saturno, que anda muito aborrecido.
CAPÍTULO CXXXVI / INUTlLIDADE
Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.
CAPÍTULO CXXXVII / A BARRETINA
E daí, não; ele resume as reflexões que fiz no dia seguinte ao
Quincas Borba, acrescentando que me sentia acabrunhado, e mil
outras coisas tristes. Mas esse filósofo, com o elevado tino de que
dispunha, bradou-me que eu ia escorregando na ladeira fatal da
melancolia.
— Meu caro Brás Cubas, não te deixes vencer desses vapores. Que
diacho! é preciso ser homem! ser forte! lutar! vencer! brilhar! influir!
dominar! Cinqüenta anos é a idade da ciência e do governo. Ânimo,
Brás Cubas; não me sejas palerma. Que tens tu com essa sucessão
de ruína a ruína ou de flor a flor? Trata de saborear a vida; e fica
sabendo que a pior filosofia é a do choramigas que se deita à
margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas.
O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de
aproveitá-la.
Vê-se nas menores coisas o que vale a autoridade de um grande
filósofo. As palavras do Quincas Borba tiveram o condão de sacudir o
torpor moral e mental em que andava. Vamos lá; façamo-nos
governo, é tempo. Eu não havia intervindo até então nos grandes
debates. Cortejava a pasta por meio de rapapés, chás, comissões e
votos; e a pasta não vinha. Urgia apoderar-me da tribuna.
Comecei devagar. Três dias depois, discutindo-se o orçamento da
justiça, aproveitei o ensejo para perguntar modestamente ao ministro
se não julgava útil diminuir a barretina da guarda nacional. Não tinha
vasto alcance o objeto da pergunta; mas ainda assim demonstrei que
não era indigno das cogitações de um homem de Estado; e citei
Filopémen, que ordenou a substituição dos broquéis de suas tropas,
que eram pequenos, por outros maiores, e bem assim as lanças, que
eram demasiado leves; fato que a história não achou que
desmentisse a gravidade de suas páginas. O tamanho das nossas
barretinas estava pedindo um corte profundo, não só por serem
deselegantes, mas também por serem anti-higiênicas. Nas paradas,
ao sol, o excesso de calor produzido por elas podia ser fatal. Sendo
certo que um dos preceitos de Hipócrates era trazer a cabeça fresca,
parecia cruel obrigar um cidadão, por simples consideração de
uniforme, a arriscar a saúde e a vida, e conseqüentemente o futuro
da família. A Câmara e o governo deviam lembrar-se que a guarda
nacional era o anteparo da liberdade e da independência, e que o
cidadão, chamado a um serviço gratuito, freqüente e penoso, tinha
direito a que se lhe diminuísse o ônus, decretando um uniforme leve
e maneiro. Acrescia que a barretina, por seu peso, abatia a cabeça
dos cidadãos, e a pátria precisava de cidadãos cuja fronte pudesse
levantar-se altiva e serena diante do poder; e concluí com esta idéia:
O chorão, que inclina os seus galhos para a terra, é árvore de
cemitério; a palmeira, ereta e firme, é árvore do deserto, das praças
e dos jardins.
Vária foi a impressão deste discurso. Quanto à forma, ao rapto
eloqüente, à parte literária e filosófica, a opinião foi só uma;
disseram-me todos que era completo, e que de uma barretina
ninguém ainda conseguira tirar tantas idéias. Mas a parte política foi
considerada por muitos deplorável; alguns achavam o meu discurso
um desastre parlamentar; enfim, vieram dizer-me que outros me
davam já em oposição, entrando nesse número os oposicionistas da
Câmara, que chegaram a insinuar a conveniência de uma moção de
desconfiança. Repeli energicamente tal interpretação, que não era só
errônea, mas caluniosa, à vista da notoriedade com que eu
sustentava o gabinete; acrescentei que a necessidade de diminuir a
barretina não era tamanha que não pudesse esperar alguns anos; e
que, em todo caso, eu transigiria na extensão do corte, contentandome
com três quartos de polegada ou menos; enfim, dado mesmo que
a minha idéia não fosse adotada, bastava-me tê-la iniciado no
parlamento.
Quincas Borba, porém, não fez restrição alguma. Não sou homem
político, disse-me ele ao jantar; não sei se andaste bem ou mal; sei
que fizeste um excelente discurso. E então notou as partes mais
salientes, as belas imagens, os argumentos fortes, com esse
comedimento de louvor que tão bem fica a um grande filósofo;
depois, tomou o assunto à sua conta, e impugnou a barretina com tal
força, com tamanha lucidez, que acabou convencendo-me
efetivamente do seu perigo.
CAPÍTULO CXXXVIII / A UM CRÍTICO
Meu caro crítico,
Algumas páginas atrás, dizendo eu que tinha cinqüenta anos,
acrescentei: “Já se vai sentindo que o meu estilo não é tão lesto
como nos primeiros dias”. Talvez aches esta frase incompreensível,
sabendo-se o meu atual estado; mas eu chamo a tua atenção para a
sutileza daquele pensamento. O que eu quero dizer não é que esteja
agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte não
envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narração da minha
vida experimento a sensação correspondente. Valha-me Deus! é
preciso explicar tudo.
CAPÍTULO CXXXIX / DE COMO NÃO FUI MINISTRO D’ESTADO
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CAPÍTULO CXL / QUE EXPLICA O ANTERIOR
Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo
anterior. Podem entendê-lo os ambiciosos malogrados. Se a paixão
do poder é a mais forte de todas, como alguns inculcam, imaginem o
desespero, a dor, o abatimento do dia em que perdi a cadeira da
Câmara dos Deputados. Iam-se-me as esperanças todas; terminava
a carreira política. E notem que o Quincas Borba, por induções
filosóficas que fez, achou que a minha ambição não era a paixão
verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. Na
opinião dele, este sentimento, não sendo mais profundo que o outro,
amofina muito mais, porque orça pelo amor que as mulheres têm às
rendas e toucados. Um Cromwell ou um Bonaparte, acrescentava ele,
por isso mesmo que os queima a paixão do poder, lá chegam à fina
força ou pela escada da direita, ou pela da esquerda. Não era assim o
meu sentimento; este, não tendo em si a mesma força, não tem a
mesma certeza do resultado; e daí a maior aflição, o maior
desencanto, a maior tristeza. O meu sentimento, segundo o
Humanitismo...
— Vai para o diabo com o teu Humanitismo, interrompi-o; estou farto
de filosofias que me não levam a coisa nenhuma.
A dureza da interrupção, tratando-se de tamanho filósofo, equivalia a
um desacato; mas ele próprio desculpou a irritação com que lhe falei.
Trouxeram-nos café; era uma hora da tarde, estávamos na minha
sala de estudo, uma bela sala, que dava para o fundo da chácara,
bons livros, objetos d'arte, um Voltaire entre eles, um Voltaire de
bronze, que nessa ocasião parecia acentuar o risinho de sarcasmo,
com que me olhava, o ladrão; cadeiras excelentes; fora, o sol, um
grande sol, que o Quincas Borba, não sei se por chalaça ou poesia,
chamou um dos ministros da natureza; corria um vento fresco, o céu
estava azul. De cada janela, — eram três — pendia uma gaiola com
pássaros, que chilreavam as suas óperas rústicas. Tudo tinha a
aparência de uma conspiração das coisas contra o homem: e,
conquanto eu estivesse na minha sala, olhando para a minha
chácara, sentado na minha cadeira, ouvindo os meus pássaros, ao pé
dos meus livros, alumiado pelo meu sol, não chegava a curar-me das
saudades daquela outra cadeira, que não era minha.
CAPÍTULO CXLI / OS CÃES
— Mas, enfim,, que pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas
Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito de uma das janelas.
— Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou
envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos
sonhos, e não sou nada.
— Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de
indignação.
Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do
Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas. Nunca me há de
esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele grande homem
era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao
combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal.
Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que
a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão
do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta
igrejinha”.
— Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...
— Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é
luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo
universal.
Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um
homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e
observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso,
motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a
circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os
cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba
meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.
— Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.
Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e
só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos
cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei
que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo
convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do
espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham
fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da
filosofia. Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o
espetáculo mais é grandioso: as criaturas humanas é que disputam
aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se
complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com
todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.
CAPÍTULO CXLII / O PEDIDO SECRETO
Quanta coisa num minuete! como dizia o outro. Quanta coisa numa
briga de cães! Mas eu não era um discípulo servil ou medroso, que
deixasse de fazer uma ou outra objeção adequada. Andando, disselhe
disputar a comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional
brandura:
— Disputá-la aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos
contendores é a mesma, e leva o osso o que for mais forte. Mas por
que não será um espetáculo grandioso disputá-lo aos cães?
Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou coisa
pior, como Ezequiel; logo, o ruim é comível; resta saber se é mais
digno do homem disputá-lo, por virtude de uma necessidade natural,
ou preferi-lo, para obedecer a uma exaltação religiosa, isto é,
modificável, ao passo que a fome é eterna, como a vida e como a
morte.
Estávamos à porta de casa; deram-me uma carta, dizendo que vinha
de uma senhora. Entramos, e o Quincas Borba, com a discrição
própria de um filósofo, foi ler a lombada dos livros de uma estante,
enquanto eu lia a carta, que era de Virgília:
“Meu bom amigo,
D. Plácida está muito mal. Peço-lhe o favor de fazer
alguma coisa por ela; mora no Beco das Escadinhas;
veja se alcança metê-la na Misericórdia.
Sua
a
mi
ga
si
nc
er
a,
Não era a letra fina e correta de Virgília, mas grossa e desigual; o V
da assinatura não passava de um rabisco sem intenção alfabética; de
maneira que, se a carta aparecesse, era muito difícil atribuir-lhe a
autoria. Virei e revirei o papel. Pobre D. Plácida! Mas eu tinha-lhe
deixado os cinco contos da praia de Botafogo, e não podia
compreender que...
— Vais compreender, disse Quincas Borba, tirando um livro da
estante.
— O quê? perguntei espantado.
A imagem vinculada não pode ser exibida. Talvez o arquivo tenha sido movido, renomeado ou excluído. Verifique se o vínculo aponta para o arquivo e o local corretos.
— Vais compreender que eu só te disse a verdade. Pascal é um dos
meus avôs espirituais; e, conquanto a minha filosofia valha mais que
a dele, não posso negar que era um grande homem. Ora, que diz ele
nesta página? — E, chapéu na cabeça, bengala sobraçada, apontava
o lugar com o dedo. — Que diz ele? Diz que o homem tem “uma
grande vantagem sobre o resto do universo: sabe que morre, ao
passo que o universo ignora-o absolutamente”. Vês? Logo, o homem
que disputa o osso a um cão tem sobre este a grande vantagem de
saber que tem fome; e é isto que torna grandiosa a luta, como eu
dizia. “Sabe que morre” é uma expressão profunda; creio todavia que
é mais profunda a minha expressão: sabe que tem fome. Porquanto o
fato da morte limita, por assim dizer, o entendimento humano; a
consciência da extinção dura um breve instante e acaba para nunca
mais, ao passo que a fome tem a vantagem de voltar, de prolongar o
estado consciente. Parece-me (se não vai nisso alguma imodéstia)
que a fórmula de Pascal é inferior à minha, sem todavia deixar de ser
um grande pensamento, e Pascal um grande homem.
CAPÍTULO CXLIII / NÃO VOU
Enquanto ele restituía o livro à estante, relia eu o bilhete. Ao jantar,
vendo que eu falava pouco, mastigava sem acabar de engolir, fitava
o canto da sala, a ponta da mesa, um prato, uma cadeira, uma
mosca invisível, disse-me ele: — Tens alguma coisa; aposto que foi
aquela carta? — Foi. Realmente, sentia-me aborrecido, incomodado
com o pedido de Virgília. Tinha dado a D. Plácida cinco contos de
réis; duvido muito que ninguém fosse mais generoso do que eu, nem
tanto. Cinco contos! E que fizera deles? Naturalmente botou-os fora,
comeu-os em grandes festas, e agora toca para a Misericórdia, e eu
que a leve! Morre-se em qualquer parte. Acresce que eu não sabia ou
não me lembrava do tal Beco das Escadinhas; mas, pelo nome,
parecia-me algum recanto estreito e escuro da cidade. Tinha de lá ir,
chamar a atenção dos vizinhos, bater à porta, etc. Que maçada! Não
vou.
CAPÍTULO CXLIV / UTILIDADE RELATIVA
Mas a noite, que é boa conselheira, ponderou que a cortesia mandava
obedecer aos desejos da minha antiga dama.
— Letras vencidas, urge pagá-las, disse eu ao levantar-me.
Depois do almoço fui à casa de D. Plácida; achei um molho de ossos,
envolto em molambos, estendido sobre um catre velho e
nauseabundo; dei-lhe algum dinheiro. No dia seguinte fi-la
transportar para a Misericórdia, onde ela morreu uma semana depois.
Minto: amanheceu morta; saiu da vida às escondidas, tal qual
entrara. Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no capítulo LXXV,
se era para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona
Plácida à luz, num momento de simpatia específica. Mas adverti logo
que, se não fosse D. Plácida, talvez os meus amores com Virgília
tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena
efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de D. Plácida.
Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse
mundo?
CAPÍTULO CXLV / SIMPLES REPETIÇÃO
Quanto aos cinco contos, não vale a pena dizer que um canteiro da
vizinhança fingiu-se enamorado de D. Plácida, logrou espertar-lhe os
sentidos, ou a vaidade, e casou com ela; no fim de alguns meses
inventou um negócio, vendeu as apólices e fugiu com o dinheiro. Não
vale a pena. É o caso dos cães do Quincas Borba. Simples repetição
de um capítulo.
CAPÍTULO CXLVI / O PROGRAMA
Urgia fundar o jornal. Redigi o programa, que era uma aplicação
política do Humanitismo; somente, como o Quincas Borba não
houvesse ainda publicado o livro (que aperfeiçoava de ano em ano),
assentamos de lhe não fazer nenhuma referência. Quincas Borba
exigiu apenas uma declaração, autógrafa e reservada, de que alguns
princípios novos aplicados à política eram tirados do livro dele, ainda
inédito.
Era a fina flor dos programas; prometia curar a sociedade, destruir os
abusos, defender os sãos princípios de liberdade e conservação; fazia
um apelo ao comércio e à lavoura; citava Guizot e Ledru-Rollin, e
acabava com esta ameaça, que o Quincas Borba achou mesquinha e
local: “A nova doutrina que professamos há de inevitavelmente
derrubar o atual ministério”. Confesso que, nas circunstâncias
políticas da ocasião, o programa pareceu-me uma obra-prima. A
ameaça do fim, que o Quincas Borba achou mesquinha, demonstreilhe
que era saturada do mais puro Humanitismo, e ele mesmo o
confessou depois. Porquanto, o Humanitismo não excluía nada; as
guerras de Napoleão e uma contenda de cabras eram, segundo a
nossa doutrina, a mesma sublimidade, com a diferença que os
soldados de Napoleão sabiam que morriam, coisa que aparentemente
não acontece às cabras. Ora, eu não fazia mais do que aplicar às
circunstâncias a nossa fórmula filosófica: Humanitas queria substituir
Humanitas para consolação de Humanitas.
— Tu és o meu discípulo amado, o meu califa, bradou Quincas Borba,
com uma nota de ternura, que até então lhe não ouvira. Posso dizer
como o grande Muamede: nem que venham agora contra mim o sol e
a lua, não recuarei das minhas idéias. Crê, meu caro Brás Cubas, que
esta é a verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos séculos.
CAPÍTULO CXLVII / O DESATINO
Mandei logo para a imprensa uma notícia discreta, dizendo que
provavelmente começaria a publicação de um jornal oposicionista, daí
a algumas semanas, redigido pelo Dr. Brás Cubas. Quincas Borba, a
quem li a notícia, pegou da pena, e acrescentou ao meu nome, com
uma fraternidade verdadeiramente humanística, esta frase: “um dos
mais gloriosos membros da passada Câmara”.
No dia seguinte entra-me em casa o Cotrim. Vinha um pouco
transtornado, mas dissimulava, afetando sossego e até alegria. Vira a
notícia do jornal, e achou que devia, como amigo e parente,
dissuadir-me de semelhante idéia. Era um erro, um erro fatal.
Mostrou que eu ia colocar-me numa situação difícil, e de certa
maneira trancar as portas do parlamento. O ministério, não só lhe
parecia excelente, o que aliás podia não ser a minha opinião, mas
com certeza viveria muito; e que podia eu ganhar com indispô-lo
contra mim? Sabia que alguns dos ministros me eram afeiçoados;
não era impossível uma vaga, e... Interrompi-o nesse ponto, para lhe
dizer que meditara muito o passo que ia dar, e não podia recuar uma
linha. Cheguei a propor-lhe a leitura do programa, mas ele recusou
energicamente, dizendo que não queria ter a mínima parte no meu
desatino.
— É um verdadeiro desatino, repetiu ele; pense ainda alguns dias, e
verá que é um desatino.
A mesma coisa disse Sabina, à noite, no teatro. Deixou a filha no
camorote, com o Cotrim, e trouxe-me ao corredor.
— Mano Brás, que é que você vai fazer? perguntou-me aflita. Que
idéia é essa de provocar o governo, sem necessidade, quando
podia...
Expliquei-lhe que não me convinha mendigar uma cadeira no
parlamento; que a minha idéia era derrubar o ministério, por não me
parecer adequado à situação — e a certa fórmula filosófica; afiancei
que empregaria sempre uma linguagem cortês, embora enérgica. A
violência não era especiaria do meu paladar. Sabina bateu com o
leque na ponta dos dedos, abanou a cabeça, e tornou ao assunto com
um ar de súplica e ameaça, alternadamente; eu disse-lhe que não,
que não, e que não. Desenganada, lançou-me em rosto preferi os
conselhos de pessoas estranhas e invejosas aos dela e do marido. —
Pois siga o que lhe parecer, concluiu; nós cumprimos a nossa
obrigação. — Deu-me as costas e voltou ao camarote.
CAPÍTULO CXLVIII / O PROBLEMA INSOLÚVEL
Publiquei o jornal. Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros
uma declaração do Cotrim, dizendo, em substância, que “posto não
militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a pátria, achava
conveniente deixar bem claro que não tinha influência nem parte
direta ou indireta na folha de seu cunhado, o Dr. Brás Cubas, cujas
idéias e procedimento político inteiramente reprovava. O atual
ministério (como aliás qualquer outro composto de iguais
capacidades) parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública”.
Não podia acabar de crer nos meus olhos. Esfreguei-os uma e duas
vezes, e reli a declaração inoportuna, insólita e enigmática. Se ele
nada tinha com os partidos, que lhe importava um incidente tão
vulgar como a publicação de uma folha? Nem todos os cidadãos que
acham bom ou mau um ministério fazem declarações tais pela
imprensa, nem são obrigados a fazê-las. Realmente, era um mistério
a intrusão do Cotrim neste negócio, não menos que a sua agressão
pessoal. Nossas relações até então tinham sido lhanas e benévolas;
não me lembrava nenhum dissentimento, nenhuma sombra, nada,
depois da reconciliação. Ao contrário, as recordações eram de
verdadeiros obséquios; assim, por exemplo, sendo eu deputado,
pude obter-lhe uns fornecimentos para o arsenal de marinha,
fornecimentos que ele continuava a fazer com a maior pontualidade,
e dos quais me dizia algumas semanas antes, que no fim de mais
três anos, podiam dar-lhe uns duzentos contos. Pois a lembrança de
tamanho obséquio não teve força para obstar que ele viesse a público
enxovalhar o cunhado? Devia ser muito poderoso e motivo da
declaração, que o fazia cometer ao mesmo tempo um destempero e
uma ingratidão; confesso que era um problema insolúvel...
CAPÍTULO CXLIX / TEORIA DO BENEFÍCIO
... Tão insolúvel que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar
de estudá-lo longamente e com boa vontade. — Ora adeus! concluiu;
nem todos os problemas valem cinco minutos de atenção.
Quanto à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a
inteiramente, não como improvável, mas como absurda, por não
obedecer às conclusões de uma boa filosofia humanística.
— Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do
beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício?
é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez
produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação,
torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe
que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o
incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de
gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus
dedos que praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é
natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta
aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo,
conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este
fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu
caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra
fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor
passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo
que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes,
persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais
ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum
valor aos olhos de um filósofo.
— Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a
memória do obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação
ao obsequiador. Quisera que me explicasses este ponto.
— Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o
Quincas Borba; mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do
benefício na memória de quem o exerce explica-se pela natureza
mesma do benefício e seus efeitos. Primeiramente há o sentimento
de uma boa ação, e dedutivamente a consciência de que somos
capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção
de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos
meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis,
segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que
no seu Elogio da Sandice escreveu algumas coisas boas, chamou a
atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao
outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi
o que ele não disse, a saber que se um dos burros coçar melhor o
outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação.
Por que é que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho,
senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá certa
superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas
ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a
miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do
que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda. Não esqueças
que, sendo tudo uma simples irradiação de Humanitas, o benefício e
seus efeitos são fenômenos perfeitamente admiráveis.
CAPÍTULO CL / ROTAÇÃO E TRANSLAÇÃO
Há em cada empresa, afeição ou idade um ciclo inteiro da vida
humana. O primeiro número do meu jornal encheu-me a alma de
uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da
mocidade. Seis meses depois batia a hora da velhice, e daí a duas
semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Plácida. No
dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que
vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida
humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos efêmeras,
como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma coisa
inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos
nítida e adequada, prefiro uma imagem astronômica: o homem
executa à roda do grande mistério um movimento duplo de rotação e
translação; tem os seus dias, desiguais como os de Júpiter, e deles
compõe o seu ano mais ou menos longo.
No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação,
concluía Lobo Neves o seu movimento de translação. Morria com o pé
na escada ministerial. Correu ao menos durante algumas semanas,
que ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita
irritação e inveja, não é impossível que a notícia da morte me
deixasse alguma tranqüilidade, alívio, e um ou dois minutos de
prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura
verdade.
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a
soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o
enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e levá-la para
dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao
cemitério; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar;
levava uma pedra na garganta ou na consciência. No cemitério,
principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no
fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento
passageiro, é certo, mas desagradável; e depois a tarde tinha o peso
e a cor do chumbo; o cemitério, as roupas pretas...
CAPÍTULO CLI / FILOSOFIA DOS EPITÁFIOS
Saí, afastando-me dos grupos, e fingindo ler os epitáfios. E, aliás,
gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão
daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à
morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez,
a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala
comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles
mesmos.
CAPÍTULO CLII / A MOEDA DE VESPASIANO
Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono. Acendi um
charuto; afastei-me do cemitério. Não podia sacudir dos olhos a
cerimônia do enterro, nem dos ouvidos os soluços de Virgília. Os
soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um
problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora choravao
com sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em
todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que
a combinação era possível, e até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor é
como a moeda de Vespasiano; não cheira à origem, e tanto se colhe
do mal como do bem. A moral repreenderá, porventura, a minha
cúmplice; é o que te não importa, implacável amiga, uma vez que lhe
recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga, três vezes Meiga Natura!
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