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3 - Memórias Póstumas de Brás Cubas - Capítulos 31 a 58
CAPÍTULO XXXI / A BORBOLETA PRETA
Na dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer,
entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e
muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me;
entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na
dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de
esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela
foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e
veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como
a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover
as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei
de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e
achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos,
lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça.
Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da
janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei
um pouco aborrecido, incomodado.
— Também por que diabo não era ela azul? disse comigo.
E esta reflexão, — uma das mais profundas que se tem feito, desde a
invenção das borboletas, — me consolou do malefício, e me
reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver,
com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato,
almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e
negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um
céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha
janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um
homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas
voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos,
braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse
consigo: “Este é provavelmente o inventor das borboletas.” A idéia
subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo,
insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijálo
na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi
pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível
que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do
inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a
imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas
verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam
como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se
ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não
era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio
dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o
dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no
jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à
primeira idéia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.
CAPÍTULO XXXII / COXA DE NASCENÇA
Fui dali acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro
mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor
circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é
apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava
com D. Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha
convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia.
Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude
deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.
Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por
minha causa, — se é que não andava muita vez assim. Sem as bichas
de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas
orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples
vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de
broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos,
fechando as mangas, e nem sombra de pulseira.
Era isso no corpo; não era outra coisa no espírito. Idéias claras,
maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se
alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual
me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar
o mesmo mote à filha...
— Agora vou mostrar-lhe a chácara, disse a mãe, logo que
esgotamos o último gole de café.
Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma
circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei
a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha
respondeu sem titubear:
— Não, senhor, sou coxa de nascença.
Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão.
Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe
não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi
— na véspera — a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e
que naquele dia já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para
encobrir o defeito; mas por que razão o confessava agora? Olhei para
ela e reparei que ia triste.
Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; — não me foi difícil,
porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e
prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara,
árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de
coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de
soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia...
Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito,
perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que
duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados; mas duas ou
três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem
temeridade, nem biocos.
CAPÍTULO XXXIII / BEM-AVENTURADOS OS QUE NÃO DESCEM
O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca,
uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar
que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se
coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha
fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com
a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um
enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de
uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no
cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta
do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite
toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.
Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a
manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos
que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs
bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a
noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado
ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o
estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e
moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha
espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem,
e ela creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca.
Uma simples égloga. D. Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava
a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão
da natureza, entregava-me a alma em flor.
— O senhor desce amanhã? disse-me ela no sábado.
— Pretendo.
— Não desça.
Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: — Bemaventurados
os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das
moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia, —
o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado
ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor
honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias
me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de
comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o
teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos de 1814, na moita, no
Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua
origem...
D. Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos
apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à janela; Eugênia sentou-se
a concertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! que arte
infinita e delicada! que tartufice profunda! e tudo isso natural, vivo,
não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto
melhor! D. Eusébia não suspeitou nada.
CAPÍTULO XXXIV / A UMA ALMA SENSÍVEL
Há aí, entre as cinco ou dez pessoas que me lêem, há aí uma alma
sensível, que está decerto um tanto agastada com o capítulo anterior,
começa a tremer pela sorte de Eugênia, e talvez... sim, talvez, lá no
fundo de si mesma, me chame cínico. Eu cínico, alma sensível? Pela
coxa de Diana! esta injúria merecia ser lavada com sangue, se o
sangue lavasse alguma coisa nesse mundo. Não, alma sensível, eu
não sou cínico, eu fui homem; meu cérebro foi um tablado em que se
deram peças de todo gênero, o drama sacro, o austero, o piegas, a
comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um
pandemônio, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas, em
que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do teu
quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos
de vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e
do beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a
expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, — que
isso às vezes é dos óculos, — e acabemos de uma vez com esta flor
da moita.
CAPÍTULO XXXV / O CAMINHO DE DAMASCO
Ora aconteceu, que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho
de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras
da Escritura (At. IX, 7): “Levanta-te, e entra na cidade.” Essa voz
saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me
desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar
deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa! Quanto a este motivo da
minha descida, não há duvidar que ela o achou e mo disse. Foi na
varanda, na tarde de uma segunda-feira, ao anunciar-lhe que na
seguinte manhã viria para baixo. — Adeus, suspirou ela estendendome
a mão com simplicidade; faz bem. — E como eu nada dissesse,
continuou: — Faz bem em fugir ao ridículo de casar comigo. Ia dizerlhe
que não; ela retirou-se lentamente, engolindo as lágrimas.
Alcancei-a a poucos passos, e jurei-lhe por todos os santos do Céu
que eu era obrigado a descer, mas que não deixava de lhe querer e
muito; tudo hipérboles frias, que ela escutou sem dizer nada.
— Acredita-me? perguntei eu no fim.
— Não, e digo-lhe que faz bem.
Quis retê-la, mas o olhar que me lançou não foi já de súplica, senão
de império. Desci da Tijuca, na manhã seguinte, um pouco
amargurado, outro pouco satisfeito. Vinha dizendo a mim mesmo que
era justo obedecer a meu pai, que era conveniente abraçar a carreira
política... que a constituição... que a minha noiva... que o meu
cavalo...
CAPÍTULO XXXVI / A PROPÓSITO DE BOTAS
Meu pai, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e
agradecimento. — Agora é deveras? disse ele. Posso enfim...?
Deixei-o nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam
apertadas. Uma vez aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio
comprido, enquanto os pés, e todo eu atrás deles, entrávamos numa
relativa bem-aventurança. Então considerei que as botas apertadas
são uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os
pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado,
desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos
sapateiros e de Epicuro. Enquanto esta idéia me trabalhava no
famoso trapézio, lançava eu os olhos para a Tijuca, e via a
aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito, e sentia que o meu
coração não tardaria também a descalçar as suas botas. E descalçouas
o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse rápido,
inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor
pungente, a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que
a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome,
com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos,
senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Em verdade vos
digo que toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas.
Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela
estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os
enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também
para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era
muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de
menos fizesse patear a tragédia humana.
CAPÍTULO XXXVII / ENFIM!
Enfim! eis aqui Virgília. Antes de ir à casa do Conselheiro Dutra,
perguntei a meu pai se havia algum ajuste prévio de casamento.
— Nenhum ajuste. Há tempos, conversando com ele a teu respeito,
confessei-lhe o desejo que tinha de te ver deputado; e de tal modo
falei, que ele prometeu fazer alguma coisa, e creio que o fará.
Quanto à noiva, é o nome que dou a uma criaturinha, que é uma
jóia, uma flor, uma estrela, uma coisa rara... é a filha dele; imaginei
que, se casasses com ela, mais depressa serias deputado.
— Só isto?
— Só isto.
Fomos dali à casa do Dutra. Era uma pérola esse homem, risonho,
jovial, patriota, um pouco irritado com os males públicos, mas não
desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura
era legítima; convinha, porém, esperar alguns meses. E logo me
apresentou à mulher, — uma estimável senhora, — e à filha, que não
desmentiu em nada o panegírico de meu pai. Juro-vos que em nada.
Relede o capítulo XXVII. Eu, que levava idéias a respeito da pequena,
fitei-a de certo modo; ela, que não sei se as tinha, não me fitou de
modo diferente; e o nosso olhar primeiro foi pura e simplesmente
conjugal. No fim de um mês estávamos íntimos.
CAPÍTULO XXXVIII / A QUARTA EDIÇÃO
— Venha cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.
Aceitei o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse
no Largo de São Francisco de Paula, e fui dar várias voltas. Lembravos
ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que,
naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas
ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava
alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação,
que era luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela Rua dos Ourives,
consulto o relógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira loja
que tinha à mão; era um cubículo, — pouco mais, — empoeirado e
escuro.
Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas
logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido
feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas a
doença e uma velhice precoce, destruíam-lhe a flor das graças. As
bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam
saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma sensação de
lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor parte do
vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que
mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo,
estava ruço e quase tão poento como os portais da loja. Num dos
dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-lo-eis, pósteros?
essa mulher era Marcela.
Não a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe
dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a expressão usual por
outra, meio doce e meio triste. Vi-lhe um movimento como para
esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não durou mais
de um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.
— Quer comprar alguma coisa? disse ela estendendo-me a mão.
Não respondi nada. Marcela compreendeu a causa do meu silêncio
(não era difícil), e só hesitou, creio eu, em decidir o que dominava
mais, se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me
uma cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si,
da vida que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das
saudades, dos desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o
rosto, e do tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a
decadência. Verdade é que tinha a alma decrépita. Vendera tudo,
quase tudo; um homem, que a amara outrora, e lhe morreu nos
braços, deixara-lhe aquela loja de ourivesaria, mas, para que a
desgraça fosse completa, era agora pouco buscada a loja — talvez
pela singularidade de a dirigir uma mulher. Em seguida pediu-me que
lhe contasse a minha vida. Gastei pouco tempo em dizer-lha; não era
longa, nem interessante.
— Casou? disse Marcela no fim de minha narração.
— Ainda não, respondi secamente.
Marcela lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflete ou
relembra; eu deixei-me ir então ao passado, e, no meio das
recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo
fizera tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822;
mas a beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus
sacrifícios? Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de
Marcela. O rosto dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me
contavam que, já outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça.
Os meus é que não souberam ver-lha; eram olhos da primeira
edição.
— Mas por que entrou aqui? viu-me da rua? perguntou ela, saindo
daquela espécie de torpor.
— Não, supunha entrar numa casa de relojoeiro; queria comprar um
vidro para este relógio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho
pressa.
Marcela suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido
e aborrecido, ao mesmo tempo, e ansiava por me ver fora daquela
casa. Marcela, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relógio, e,
apesar da minha oposição, mandou-o, a uma loja na vizinhança,
comprar o vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela
então que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo;
ponderou que mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e
afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse
preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e transparente.
Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a
moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o
único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor
daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois.
CAPÍTULO XXXIX / O VIZINHO
Enquanto eu fazia comigo mesmo aquela reflexão, entrou na loja um
sujeito baixo, sem chapéu, trazendo pela mão uma menina de quatro
anos.
— Como passou de hoje de manhã? disse ele a Marcela.
— Assim, assim. Vem cá, Maricota.
O sujeito levantou a criança pelos braços e passou-a para dentro do
balcão.
— Anda, disse ele; pergunta a D. Marcela como passou a noite.
Estava ansiosa por vir cá, mas a mãe não tinha podido vesti-la..,
Então, Maricota? Toma a bênção... Olha a vara de marmelo! Assim...
Não imagina o que ela é lá em casa; fala na senhora a todos os
instantes, e aqui parece uma pamonha. Ainda ontem... Digo,
Maricota?
— Não, diga, não, papai.
— Então foi alguma coisa feia? perguntou Marcela batendo na cara da
menina.
— Eu lhe digo; a mãe ensina-lhe a rezar todas as noites um padrenosso
e uma ave-maria, oferecidos a Nossa Senhora; mas a pequena
ontem veio pedir-me com voz muito humilde... imagine o quê?... que
queria oferecê-los a Santa Marcela.
— Coitadinha! disse Marcela beijando-a.
— É um namoro, uma paixão, como a senhora não imagina... A mãe
diz que é feitiço...
Contou mais algumas coisas o sujeito, todas muito agradáveis, até
que saiu levando a menina, não sem deitar-me um olhar
interrogativo ou suspeitoso. Perguntei a Marcela quem era ele.
— É um relojoeiro da vizinhança, um bom homem; a mulher
também; e a filha é galante, não? Parecem gostar muito de mim... é
boa gente.
Ao proferir estas palavras havia um tremor de alegria na voz de
Marcela; e no rosto como que se lhe espraiou uma onda de ventura...
CAPÍTULO XL / NA SEGE
Nisto entrou o moleque trazendo o relógio com o vidro novo. Era
tempo; já me custava estar ali; dei uma moedinha de prata ao
moleque; disse a Marcela que voltaria noutra ocasião, e saí a passo
largo. Para dizer tudo, devo confessar que o coração me batia um
pouco; mas era uma espécie de dobre de finados. O espírito ia
travado de impressões opostas. Notem que aquele dia amanhecera
alegre para mim. Meu pai, ao almoço, repetiu-me, por antecipação, o
primeiro discurso que eu tinha de proferir na Câmara dos Deputados;
rimo-nos muito, e o sol também, que estava brilhante, como nos
mais belos dias do mundo; do mesmo modo que Virgília devia rir,
quando eu lhe contasse as nossas fantasias do almoço. Vai senão
quando, cai-me o vidro do relógio; entro na primeira loja que me fica
à mão; e eis me surge o passado, ei-lo que me lacera e beija; ei-lo
que me interroga, com um rosto cortado de saudades e bexigas...
Lá o deixei; meti-me às pressas na sege, que me esperava no Largo
de São Francisco de Paula, e ordenei ao boleeiro que rodasse pelas
ruas fora. O boleeiro atiçou as bestas, a sege entrou a sacolejar-me,
as molas gemiam, as rodas sulcavam rapidamente a lama que
deixara a chuva recente, e tudo isso me parecia estar parado. Não
há, às vezes, um certo vento morno, não forte nem áspero, mas
abafadiço, que nos não leva o chapéu da cabeça, nem rodomoinha
nas saias das mulheres, e todavia é ou parece ser pior do que se
fizesse uma e outra coisa, porque abate, afrouxa, e como que
dissolve os espíritos? Pois eu tinha esse vento comigo; e, certo de
que ele me soprava por achar-me naquela espécie de garganta entre
o passado e o presente, almejava por sair à planície do futuro. O pior
é que a sege não andava.
— João, bradei eu ao boleeiro. Esta sege anda ou não anda?
— Uê! nhonhô! Já estamos parados na porta de sinhô conselheiro.
CAPÍTULO XLI / A ALUCINAÇÃO
Era verdade. Entrei apressado; achei Virgília ansiosa, mau humor,
fronte nublada. A mãe, que era surda, estava na sala com ela. No fim
dos cumprimentos disse-me a moça com sequidão:
— Esperávamos que viesse mais cedo.
Defendi-me do melhor modo; falei do cavalo que empacara, e de um
amigo, que me detivera. De repente morre-me a voz nos lábios, fico
tolhido de assombro. Virgília... seria Virgília aquela moça? Fitei-a
muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a
vista. Tornei a olhá-la. As bexigas tinham-lhe comido o rosto; a pele,
ainda na véspera tão fina, rosada e pura, aparecia-me agora
amarela, estigmada pelo mesmo flagelo, que devastara o rosto da
espanhola. Os olhos, que eram travessos, fizeram-se murchos; tinha
o lábio triste e a atitude cansada. Olhei-a bem; peguei-lhe na mão, e
chamei-a brandamente a mim. Não me enganava; eram as bexigas.
Creio que fiz um gesto de repulsa.
Virgília afastou-se, e foi sentar-se no sofá. Eu fiquei algum tempo a
olhar para os meus próprios pés. Devia sair ou ficar? Rejeitei o
primeiro alvitre, que era simplesmente absurdo, e encaminhei-me
para Virgília, que lá estava sentada e calada. Céus! Era outra vez a
fresca, a juvenil, a florida Virgília. Em vão procurei no rosto dela
algum vestígio da doença; nenhum havia; era a pele fina e branca do
costume.
— Nunca me viu? perguntou Virgília, vendo que a encarava com
insistência.
— Tão bonita, nunca.
Sentei-me, enquanto Virgília, calada, fazia estalar as unhas.
Seguiram-se alguns segundos de pausa. Falei-lhe de coisas estranhas
ao incidente; ela porém não me respondia nada, nem olhava para
mim. Menos o estalido, era a estátua do Silêncio. Uma só vez me
deitou os olhos, mas muito de cima, soerguendo a pontinha esquerda
do lábio, contraindo as sobrancelhas, ao ponto de as unir; todo esse
conjunto de coisas dava-lhe ao rosto uma expressão média, entre
cômica e trágica.
Havia alguma afetação naquele desdém; era um arrebique do gesto.
Lá dentro, ela padecia, e não pouco, — ou fosse mágoa pura, ou só
despeito; e porque a dor que se dissimula dói mais, é muito provável
que Virgília padecesse em dobro do que realmente devia padecer.
Creio que isto é metafísica.
CAPÍTULO XLII / QUE ESCAPOU A ARISTÓTELES
Outra coisa que também me parece metafísica é isto: — Dá-se
movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola,
transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a rolar como a primeira
rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, — é
uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília.
Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até
tocar em Brás Cubas, — o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a
rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a
primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força,
se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma coisa que
poderemos chamar — solidariedade do aborrecimento humano. Como
é que este capítulo escapou a Aristóteles?
CAPÍTULO XLIII / MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS
Positivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se
querem, mas era-o, e então...
Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto
que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e
todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de
poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não
precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família.
Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a
candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi;
tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília
perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
— Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
— Promete que algum dia me fará baronesa?
— Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e
elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito,
e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez
que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é
como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia;
é justamente o contrário.
CAPÍTULO XLIV / UM CUBAS!
Meu pai ficou atônito com o desenlace, e quer-me parecer que não
morreu de outra coisa. Eram tantos os castelos que engenhara,
tantos e tantíssimos os sonhos, que não podia vê-los assim
esboroados, sem padecer um forte abalo no organismo. A princípio
não quis crê-lo. Um Cubas! um galho da árvore ilustre dos Cubas! E
dizia isto com tal convicção, que eu, já então informado da nossa
tanoaria, esqueci um instante a volúvel dama, para só contemplar
aquele fenômeno, não raro, mas curioso: uma imaginação graduada
em consciência.
— Um Cubas! repetia-me ele na seguinte manhã, ao almoço.
Não foi alegre o almoço; eu próprio estava a cair de sono. Tinha
velado uma parte da noite. De amor? Era impossível; não se ama
duas vezes a mesma mulher, e eu, que tinha de amar aquela, tempos
depois, não lhe estava agora preso por nenhum outro vínculo, além
de uma fantasia passageira, alguma obediência e muita fatuidade. E
isto basta a explicar a vigília; era despeito, um despeitozinho agudo
como ponta de alfinete, o qual se desfez, com charutos, murros,
leituras truncadas, até romper a aurora, a mais tranqüila das
auroras.
Mas eu era moço, tinha o remédio em mim mesmo. Meu pai é que
não pôde suportar facilmente a pancada. Pensando bem, pode ser
que não morresse precisamente do desastre; mas que o desastre lhe
complicou as últimas dores, é positivo. Morreu daí a quatro meses, —
acabrunhado, triste, com uma preocupação intensa e contínua, à
semelhança de remorso, um desencanto mortal, que lhe substituiu os
reumatismos e tosses. Teve ainda meia hora de alegria; foi quando
um dos ministros o visitou. Vi-lhe, — lembra-me bem, — vi-lhe o
grato sorriso de outro tempo, e nos olhos uma concentração de 1uz,
que era, por assim dizer, o último lampejo da alma expirante. Mas a
tristeza tornou logo, a tristeza de morrer sem me ver posto em
algum lugar alto, como aliás me cabia.
— Um Cubas!
Morreu alguns dias depois da visita do ministro, uma manhã de maio,
entre os dois filhos, Sabina e eu, e mais o tio Ildefonso e meu
cunhado. Morreu sem lhe poder valer a ciência dos médicos, nem o
nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa
nenhuma; tinha de morrer, morreu.
— Um Cubas!
CAPÍTULO XLV / NOTAS
Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem
que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão,
caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam,
lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns
tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões
d’água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que
o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não
obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o
coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as
correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que
parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para
um capítulo triste e vulgar que não escrevo.
CAPÍTULO XLVI / A HERANÇA
Veja-nos agora o leitor, oito dias depois da morte de meu pai, —
minha irmã sentada num sofá, — pouco adiante, Cotrim, de pé,
encostado a um consolo, com os braços cruzados e a morder o
bigode, — eu a passear de um lado para outro, com os olhos no
chão. Luto pesado. Profundo silêncio.
— Mas afinal, disse Cotrim; esta casa pouco mais pode valer de trinta
contos; demos que valha trinta e cinco...
— Vale cinqüenta, ponderei; Sabina sabe que custou cinqüenta e
oito...
— Podia custar até sessenta, tornou Cotrim; mas não se segue que
os valesse, e menos ainda que os valha hoje. Você sabe que as
casas, aqui há anos, baixaram muito. Olhe, se esta vale os cinqüenta
contos, quantos não vale a que você deseja para si, a do Campo?
— Não fale nisso! Uma casa velha.
— Velha! exclamou Sabina, levantando as mãos ao teto.
— Parece-lhe nova, aposto?
— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do
sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por
exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o
Paulo...
— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar
outro.
— Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.
— O Prudêncio está livre.
— Livre?
— Há dois anos.
— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar
parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não
libertou a prata?
Tínhamos falado na prata, a velha prataria do tempo de D. José I, a
porção mais grave da herança, já pelo lavor, já pela vetustez, já pela
origem da propriedade; dizia meu pai que o Conde da Cunha, quando
vice-rei do Brasil, a dera de presente a meu bisavô Luís Cubas.
— Quanto à prata, continuou Cotrim, eu não faria questão nenhuma,
se não fosse o desejo que sua irmã tem de ficar com ela; e acho-lhe
razão. Sabina é casada, e precisa de uma copa digna, apresentável.
Você é solteiro, não recebe, não...
— Mas posso casar.
— Para quê? interrompeu Sabina.
Era tão sublime esta pergunta, que por alguns instantes me fez
esquecer os interesses. Sorri; peguei na mão de Sabina, bati-lhe
levemente na palma, tudo isso com tão boa sombra, que o Cotrim
interpretou o gesto como de aquiescência, e agradeceu-mo.
— Que é lá? redargüi; não cedi coisa nenhuma, nem cedo.
— Nem cede?
Abanei a cabeça.
— Deixa, Cotrim, disse minha irmã ao marido; vê se ele quer ficar
também com a nossa roupa do corpo; é só o que falta.
— Não falta mais nada. Quer a sege, quer o boleeiro, quer a prata,
quer tudo. Olhe, é muito mais sumário citar-nos a juízo e provar com
testemunhas que Sabina não é sua irmã, que eu não sou seu
cunhado e que Deus não é Deus. Faça isto, e não perde nada, nem
uma colherinha. Ora, meu amigo, outro ofício!
Estava tão agastado, e eu não menos, que entendi oferecer um meio
de conciliação; dividir a prata. Riu-se e perguntou-me a quem caberia
o bule e a quem o açucareiro; e depois desta pergunta, declarou que
teríamos tempo de liquidar a pretensão, quando menos em juízo.
Entretanto, Sabina fora até à janela que dava para a chácara, — e
depois de um instante, voltou, e propôs ceder o Paulo e outro preto,
com a condição de ficar com a prata; eu ia dizer que não me
convinha, mas Cotrim adiantou-se e disse a mesma coisa.
— Isso nunca! não faço esmolas! disse ele.
Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda
presenciou uma pequena altercação.
— Meus filhos, disse ele, lembrem-se que meu irmão deixou um pão
bem grande para ser repartido por todos.
Mas Cotrim:
— Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão
seco é que eu não engulo.
Fizeram-se finalmente as partilhas, mas nós estávamos brigados. E
digo-lhes que, ainda assim, custou-me muito a brigar com Sabina.
Éramos tão amigos! Jogos pueris, fúrias de criança, risos e tristezas
da idade adulta, dividimos muita vez esse pão da alegria e da
miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos. Mas estávamos
brigados. Tal qual a beleza de Marcela, que se esvaiu com as bexigas.
CAPÍTULO XLVII / O RECLUSO
Marcela, Sabina, Virgília... aí estou eu a fundir todos os contrastes,
como se esses nomes e pessoas não fossem mais do que modos de
ser da minha afeição interior. Pena de maus costumes, ata uma
gravata ao estilo, veste-lhe um colete menos sórdido; e depois sim,
depois vem comigo, entra nessa casa, estira-te nessa rede que me
embalou a melhor parte dos anos que decorreram desde o inventário
de meu pai até 1842. Vem; se te cheirar a algum aroma de toucador,
não cuides que o mandei derramar para meu regalo; é um vestígio
da N. ou da Z. ou da U. — que todas essas letras maiúsculas
embalaram aí a sua elegante abjeção. Mas, se além do aroma,
quiseres outra coisa, fica-te com o desejo, porque eu não guardei
retratos, nem cartas, nem memórias, a mesma comoção esvaiu-se, e
só me ficaram as letras iniciais.
Vivi meio recluso, indo de longe em longe a algum baile, ou teatro,
ou palestra, mas a maior parte do tempo passei-a comigo mesmo.
Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos dias, ora
buliçoso, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia política
e fazia literatura. Mandava artigos e versos para as folhas públicas, e
cheguei a alcançar certa reputação de polemista e de poeta. Quando
me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília,
futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor
deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves, — eu, que valia
mais, muito mais do que ele, — e dizia isto a olhar para a ponta do
nariz...
CAPÍTULO XLVIII / UM PRIMO DE VIRGÍLIA
— Sabe quem chegou ontem de São Paulo? perguntou-me uma noite
Luís Dutra.
Luís Dutra era um primo de Virgília, que também privava com as
musas. Os versos dele agradavam e valiam mais do que os meus;
mas ele tinha necessidade da sanção de alguns, que lhe confirmasse
o aplauso dos outros. Como fosse acanhado, não interrogava a
ninguém; mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço;
então criava novas forças e arremetia juvenilmente ao trabalho.
Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha
casa, e entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de
uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, e
eu falava-lhe de mil coisas diferentes, — do último baile do Catete,
da discussão das câmaras, de berlindas e cavalos, — de tudo, menos
dos seus versos ou prosas. Ele respondia-me, a princípio com
animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa para o seu
assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho
novo, e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o
outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que empacava de todo e saía
triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo,
eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...
CAPÍTULO XLIX / A PONTA DO NARIZ
Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida... Já
meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação
do Doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e
tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva;
mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos
obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva
explicação.
Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor
que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o
fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do
nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no
invisível, aprende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se,
eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno
mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao
faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder
de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e
tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um
nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se
contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano
não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras
tribos.
Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele se
nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o
seu próprio nariz?
Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um
chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de
um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem
quatro; promete ter seis a oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus
do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro
compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas
portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que
de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando,
concentrado, com os olhos para baixo ou para a frente, a indagar as
causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele
chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro...
Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.
A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que
multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo.
Procriação, equilíbrio.
CAPÍTULO L / VIRGÍLIA CASADA
— Quem chegou de São Paulo foi minha prima Virgília, casada com o
Lobo Neves, continuou Luís Dutra.
— Ah!
— E só hoje é que eu soube uma coisa, seu maganão...
— Que foi?
— Que você quis casar com ela.
— Idéias de meu pai. Quem lhe disse isso?
— Ela mesma. Falei-lhe muito em você, e ela então contou-me tudo.
No dia seguinte, estando na Rua do Ouvidor, à porta da tipografia do
Plancher, vi assomar, a distância, uma mulher esplêndida. Era ela; só
a reconheci a poucos passos, tão outra estava, a tal ponto a natureza
e a arte lhe haviam dado o último apuro. Cortejamo-nos; ela seguiu;
entrou com o marido na carruagem, que os esperava um pouco
acima; fiquei atônito.
Oito dias depois, encontrei-a num baile; creio que chegamos a trocar
duas ou três palavras. Mas noutro baile, dado daí a um mês, em casa
de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não
desornava então os do segundo, a aproximação foi maior e mais
longa, porque conversamos e valsamos. A valsa é uma deliciosa
coisa. Valsamos; não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele
corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação
de homem roubado.
— Está muito calor, disse ela, logo que acabamos. Vamos ao terraço?
— Não; pode constipar-se. Vamos a outra sala.
Na outra sala estava Lobo Neves, que me fez muitos cumprimentos,
acerca dos meus escritos políticos, acrescentando que nada dizia dos
literários por não entender deles; mas os políticos eram excelentes,
bem pensados e bem escritos. Respondi-lhe com iguais esmeros de
cortesia, e separamo-nos contentes um do outro.
Cerca de três semanas depois recebi um convite dele para uma
reunião íntima. Fui; Virgília recebeu-me com esta graciosa palavra: —
O senhor hoje há de valsar comigo. — Em verdade, eu tinha fama e
era valsista emérito; não admira que ela me preferisse. Valsamos
uma vez, e mais outra vez. Um livro perdeu Francesca; cá foi a valsa
que nos perdeu. Creio que essa noite apertei-lhe a mão com muita
força, e ela deixou-a ficar, como esquecida, e eu a abraçá-la, e todos
com os olhos em nós, e nos outros que também se abraçavam e
giravam... Um delírio.
CAPÍTULO LI / É MINHA!
— É minha! disse eu comigo, logo que a passei a outro cavalheiro; e
confesso que durante o resto da noite, foi-se-me a idéia entranhando
no espírito, não à força de martelo, mas de verruma, que é mais
insinuativa.
— É minha! dizia eu ao chegar à porta de casa.
Mas aí, como se o destino ou o acaso, ou o que quer que fosse, se
lembrasse de dar algum pasto aos meus arroubos possessórios,
luziu-me no chão uma coisa redonda e amarela. Abaixei-me; era uma
moeda de ouro, uma meia dobra.
— É minha! repeti eu a rir-me, e meti-a no bolso.
Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte,
recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que
me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não
herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente
não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e
talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de
comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o
mesmo. Cumpria restituir a moeda, e o melhor meio, o único meio,
era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei uma
carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe
que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do
verdadeiro dono.
Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso.
Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar
sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma
janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de
ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências!
não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras
circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo
escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a
minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é
o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.
— Fizeste bem, Cubas; andaste perfeitamente. Este ar não é só puro,
é balsâmico, é uma transpiração dos eternos jardins. Queres ver o
que fizeste, Cubas?
E a boa dama sacou um espelho e abriu-mo diante dos olhos. Vi,
claramente vista, a meia dobra da véspera, redonda, brilhante,
multiplicando-se por si mesma, — ser dez — depois trinta — depois
quinhentas, — exprimindo assim o benefício que me daria na vida e
na morte o simples ato da restituição. E eu espraiava todo o meu ser
na contemplação daquele ato, revia-me nele, achava-me bom, talvez
grande. Uma simples moeda, hem? Vejam o que é ter valsado um
poucochinho mais.
Assim eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência
das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela
fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar
continuamente a consciência. Talvez não entendas o que aí fica;
talvez queiras uma coisa mais concreta, um embrulho, por exemplo,
um embrulho misterioso. Pois toma lá o embrulho misterioso.
CAPÍTULO LII / O EMBRULHO MISTERIOSO
Foi o caso que, alguns dias depois, indo eu a Botafogo, tropecei num
embrulho, que estava na praia. Não digo bem; houve menos
tropeção que pontapé. Vendo um embrulho, pão grande, mas limpo e
corretamente feito, atado com um barbante rijo, uma coisa que
parecia alguma coisa, lembrou-me bater-lhe com o pé, assim por
experiência, e bati, e o embrulho resistiu. Relanceei os olhos em volta
de mim; a praia estava deserta; ao longe uns meninos brincavam, —
um pescador curava as redes ainda mais longe, — ninguém que
pudesse ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui.
Segui, mas não sem receio. Podia ser uma pulha de rapazes. Tive
idéia de devolver o achado à praia, mas apalpei-o e rejeitei a idéia.
Um pouco adiante, desandei o caminho e guiei para casa.
— Vejamos, disse eu ao entrar no gabinete.
E hesitei um instante, creio que por vergonha; assaltou-me outra vez
o receio da pulha. É certo que não havia ali nenhuma testemunha
externa; mas eu tinha dentro de mim mesmo um garoto, que havia
de assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o
diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de
lenços velhos ou duas dúzias de goiabas podres. Era tarde; a
curiosidade estava aguçada, como deve estar a do leitor; desfiz o
embrulho, e vi... achei... contei... recontei nada menos de cinco
contos de réis. Nada menos. Talvez uns dez mil-réis mais. Cinco
contos em boas notas e moedas, tudo asseadinho e arranjadinho, um
achado raro. Embrulhei-as de novo. Ao jantar pareceu-me que um
dos moleques falara a outro com os olhos. Ter-me-iam espreitado?
Interroguei-os discretamente, e concluí que não. Sobre o jantar fui
outra vez ao gabinete, examinei o dinheiro, e ri-me dos meus
cuidados maternais a respeito de cinco contos, — eu, que era
abastado.
Para não pensar mais naquilo fui de noite à casa do Lobo Neves, que
instara muito comigo não deixasse de freqüentar as recepções da
mulher. Lá encontrei o chefe de polícia; fui-lhe apresentado; ele
lembrou-se logo da carta e da meia dobra que eu lhe remetera
alguns dias antes. Aventou o caso; Virgília pareceu saborear o meu
procedimento, e cada um dos presentes acertou de contar uma
anedota análoga, que eu ouvi com impaciência de mulher histérica.
De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos
que pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito
quietinhos na gaveta da secretária. Gostava de falar de todas as
coisas, menos de dinheiro, e principalmente de dinheiro achado;
todavia não era crime achar dinheiro, era uma felicidade, um bom
acaso, era talvez um lance da Providência. Não podia ser outra coisa.
Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco.
Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo,
não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o
pensamento, e para se perderem assim tolamente, numa praia, é
necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime,
nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem.
Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as
apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi
que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau,
nem indigno dos benefícios da Providência.
— Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de
empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina
pobre, ou outra coisa assim... hei de ver...
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com
muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia
andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento;
respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho
estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me
encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.
CAPÍTULO LIII / . . . . .
Virgília é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava
concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu
pensamento; — era o que dizia, e era verdade.
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias
e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta
seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante
criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que
durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite,
abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um
beijo que ela me deu, trêmula, — coitadinha, — trêmula de medo,
porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, — breve
como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de
delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em
dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma hipocrisia
paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida
de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora
pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela,
como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto
do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.
CAPÍTULO LIV / A PÊNDULA
Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir; estirei-me na cama, é
certo, mas foi o mesmo que nada. Ouvi as horas todas da noite.
Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me
muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a
cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava
então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da
morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las
assim:
— Outra de menos...
— Outra de menos...
— Outra de menos...
— Outra de menos...
O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para
que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os
meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou
acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e
perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há
de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que
morre.
Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra,
e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas
sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o
anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os
minutos ganhados. De certo tempo em diante não ouvi coisa
nenhuma, porque o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou
pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí
achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaramse
e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,
necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o
velho diálogo de Adão e Eva.
CAPÍTULO LV / O VELHO DIÁLOGO DE ADÃO E EVA
BRÁS CUBAS................................?
VIRGÍLIA...............................
BRÁS
CUBAS.......................................................................................
.........
........................................................
VIRGÍLIA..........................................!
BRÁS CUBAS.................................
VIRGÍLIA....................................................................................
......................................................................?
..................................................
.......................................................
BRÁS CUBAS.................................
VIRGÍLIA...............................................
BRÁS
CUBAS.......................................................................................
.......
.............................
..........!..............................!...........................!
VIRGÍLIA....................................................?
BRÁS CUBAS..............................................!
VIRGÍLIA...................................................!
CAPÍTULO LVI / O MOMENTO OPORTUNO
Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta diferença? Um
dia vimo-nos, tratamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a
frio, sem dor, porque não houvera paixão nenhuma; mordeu-me
apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la,
damos três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro
com delírio. A beleza de Virgília chegara, é certo, a um alto grau de
apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu, à minha
parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me
explicará a razão dessa diferença?
A razão não podia ser outra senão o momento oportuno. Não era
oportuno o primeiro momento, porque, se nenhum de nós estava
verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor: distinção
fundamental. Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos.
Esta explicação achei-a eu mesmo, dois anos depois do beijo, um dia
em que Virgília se me queixava de um pintalegrete que lá ia e
tenazmente a galanteava.
— Que importuno! dizia ela fazendo uma careta de raiva.
Estremeci, fitei-a, vi que a indignação era sincera; então ocorreu-me
que talvez eu tivesse provocado alguma vez aquela mesma careta, e
compreendi logo toda a grandeza da minha evolução. Tinha vindo de
importuno a oportuno.
CAPÍTULO LVII / DESTINO
Sim, senhor, amávamos. Agora, que todas as leis sociais no-lo
impediam, agora é que nos amávamos deveras. Achávamo-nos
jungidos um ao outro, como as duas almas que o poeta encontrou no
Purgatório:
Di pari, come buoi, che vanno a giogo;
e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie
de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo. Eis-nos a caminhar
sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que
me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei
ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador
dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara,
outras maneiras, outro nome, e não é impossível que... Já me não
lembra onde estava... Ah! nas estradas escusas. Disse eu comigo que
já agora seria o que Deus quisesse. Era a nossa sorte amar-nos; se
assim não fora, como explicaríamos a valsa e o resto? Virgília
pensava a mesma coisa. Um dia, depois de me confessar que tinha
momentos de remorsos, como eu lhe dissesse que, se tinha
remorsos, é porque me não tinha amor, Virgília cingiu-me com os
seus magníficos braços, murmurando:
— Amo-te, é a vontade do Céu.
E esta palavra não vinha à toa; Virgília era um pouco religiosa. Não
ouvia missa aos domingos, é verdade, e creio até que só ia às igrejas
em dia de festa, e quando havia lugar vago em alguma tribuna. Mas
rezava todas as noites, com fervor, ou, pelo menos, com sono. Tinha
medo às trovoadas; nessas ocasiões, tapava os ouvidos, e
resmoneava todas as orações do catecismo. Na alcova dela havia um
oratoriozinho de jacarandá, obra de talha, de três palmos de altura,
com três imagens dentro; mas não falava dele às amigas; ao
contrário, tachava de beatas as que eram só religiosas. Algum tempo
desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religião
era uma espécie de camisa de flanela, preservativa e clandestina;
mas evidentemente era engano meu.
CAPÍTULO LVIII / CONFIDÊNCIA
Lobo Neves, a princípio, metia-me grandes sustos. Pura ilusão! Como
adorasse a mulher, não se vexava de mo dizer muitas vezes; achava
que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades
sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo. E a
confiança não parava aí. De fresta que era, chegou a porta
escancarada. Um dia confessou-me que trazia uma triste carcoma na
existência; faltava-lhe a glória pública. Animei-o; disse-lhe muitas
coisas bonitas, que ele ouviu com aquela unção religiosa de um
desejo que não quer acabar de morrer; então compreendi que a
ambição dele andava cansada de bater as asas, sem poder abrir o
vôo. Dias depois disse-me todos os seus tédios e desfalecimentos, as
amarguras engolidas, as raivas sopitadas; contou-me que a vida
política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias,
interesses, vaidades. Evidentemente havia aí uma crise de
melancolia; tratei de combatê-la.
— Sei o que lhe digo, replicou-me com tristeza. Não pode imaginar o
que tenho passado. Entrei na política por gosto, por família, por
ambição, e um pouco por vaidade. Já vê que reuni em mim só todos
os motivos que levam o homem à vida pública; faltou-me só o
interesse de outra natureza. Vira o teatro pelo lado da platéia; e,
palavra, que era bonito! Soberbo cenário, vida, movimento e graça
na representação. Escriturei-me; deram-me um papel que... Mas
para que o estou a fatigar com isto? Deixe-me ficar com as minhas
amofinações. Creia que tenho passado horas e dias... Não há
constância de sentimentos, não há gratidão, não há nada... nada....
nada...
Calou-se, profundamente abatido, com os olhos no ar, parecendo não
ouvir coisa nenhuma, a não ser o eco de seus próprios pensamentos.
Após alguns instantes, ergueu-se e estendeu-me a mão: — O senhor
há de rir-se de mim, disse ele; mas desculpe aquele desabafo; tinha
um negócio, que me mordia o espírito. E ria, de um jeito sombrio e
triste; depois pediu-me que não referisse a ninguém o que se passara
entre nós; ponderei-lhe que a rigor não se passara nada. Entraram
dois deputados e um chefe político da paróquia. Lobo Neves recebeuos
com alegria, a princípio um tanto postiça, mas logo depois natural.
No fim de meia hora, ninguém diria que ele não era o mais
afortunado dos homens; conversava, chasqueava, e ria, e riam todos.
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