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Memórias Póstumas de Brás Cubas
Atualizado: 15 de Ago de 2019
Obra Completa, Machado de Assis.
Publicada originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.
Ao verme
que
primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas
Memórias Póstumas
Prólogo da terceira edição
A primeira edição destas Memórias Póstumas de Brás Cubas foi feita aos pedaços na Revista Brasileira, pelos anos de 1880. Postas mais tarde em livro, corrigi o texto em vários lugares. Agora que tive de o rever para a terceira edição, emendei ainda alguma coisa e suprimi duas ou três dúzias de linhas. Assim composta, sai novamente à luz esta obra que alguma benevolência parece ter encontrado no público.
Capistrano de Abreu, noticiando a publicação do livro, perguntava: “As Memórias Póstumas de Brás Cubas são um romance?” Macedo Soares, em carta que me escreveu por esse tempo, recordava amigamente as Viagens na minha terra. Ao primeiro respondia já o defunto Brás Cubas (como o leitor viu e verá no prólogo dele que vai adiante) que sim e que não, que era romance para uns e não o era para outros. Quanto ao segundo, assim se explicou o finado: “Tratase de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo.” Toda essa gente viajou: Xavier de Maistre à roda do quarto, Garret na terra dele, Sterne na terra dos outros. De Brás Cubas se pode dizer que viajou à roda da vida.
O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama “rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo.
Machado de Assis.
AO LEITOR
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo.
O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.
A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas.
CAPÍTULO PRIMEIRO / ÓBITO DO AUTOR
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento,
duas considerações me levaram a adotar diferente método: a
primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que
o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também
contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença
radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês
de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns
sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca
de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem
anúncios. Acresce que chovia — peneirava uma chuvinha miúda,
triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles
fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa idéia no discurso que
proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus
senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar
chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que
têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo,
tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à Natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe
deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim
que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as
ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego
como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viramme
ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha
irmã Sabina, casada com o Cotrim, a filha, — um lírio do vale, — e...
Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira
senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não
parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais.
Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um
solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o
que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à
cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a
triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— “Morto! morto!” dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o vôo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das
ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou
por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil...
Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir
aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente,
metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos
homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e
o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá
fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte
foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em
diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com
uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia
à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e
lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a
pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha
morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou
expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
CAPÍTULO II / O EMPLASTO
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara,
pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma
vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais
arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me
estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os
braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou
devoro-te.
Essa idéia era nada menos que a invenção de um medicamento
sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi,
chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente
cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias
que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão
profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida,
posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de
ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim
nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas.
Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete
de lágrimas. Talvez os modestos me argúam esse defeito; fio, porém,
que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha
idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o
público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro
lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o
amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem
cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos
antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais
verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a
sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
CAPÍTULO III / GENEALOGIA
Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto
esboço genealógico.
O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que
floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício,
natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na
obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se
lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e
honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um
filho, licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente
começa a série de meus avós — dos avós que a minha família sempre
confessou, — porque o Damião Cubas era afinal de contas um
tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou
em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do
vice-rei Conde da Cunha.
Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria,
alegava meu pai, bisneto de Damião, que o dito apelido fora dado a
um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha
que praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros. Meu pai era
homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um
calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como
poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é
um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à
inventiva senão depois de experimentar a falsificação;
primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso
homônimo, o capitão-mor, Brás Cubas, que fundou a vila de São
Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o
nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi
então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas.
Vivem ainda alguns membros de minha família, minha sobrinha
Venância, por exemplo, o lírio do vale, que é a flor das damas do seu
tempo; vive o pai, o Cotrim, um sujeito que... Mas não antecipemos
os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.
CAPÍTULO IV / A IDÉIA FIXA
A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa.
Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma
trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o
matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir
que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna
loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um
simplório, — ou “uma abóbora” como lhe chamou Sêneca, e um Tito,
que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um
professor e achou meio de demonstrar que dos dois césares, o
delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o “abóbora” de Sêneca. E tu,
madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a
Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou
muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste
pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio.
Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e, tornando
à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doidos; a
idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, — fórmula
Suetônio.
Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja
assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito,
talvez a finada dieta germânica. Veja o leitor a comparação que
melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só
porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá
iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros
leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos.
Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a
pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra
supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo
brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem
regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que
apostolado.
Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a
história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós
pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de
Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de
Cromwell, é só pela idéia de que Sua Alteza, com a mesma mão que
trancara o parlamento, teria imposto aos ingleses o emplasto Brás
Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia e do
puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande,
pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras
modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra
daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é
como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu
este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a
comparação não presta.
CAPÍTULO V / EM QUE APARECE A ORELHA DE UMA SENHORA
Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha
invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me
tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos
doidos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e
remontar ao Céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão
excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No
outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem
método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que
me trouxe à eternidade. Sabem já que morri numa sexta-feira, dia
aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me
matou. Há demonstrações menos lúcidas e não menos triunfantes.
Não era impossível, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de
um século, e a figurar nas folhas públicas, entre macróbios. Tinha
saúde e robustez. Suponha-se que, em vez de estar lançando os
alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os
elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa.
Vinha a corrente de ar, que vence em eficácia o cálculo humano, e lá
se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.
Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta,
mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a
anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança
das cegonhas do Ilisso... Tinha então 54 anos, era uma ruína, uma
imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos
anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da
alcova...
CAPÍTULO VI / CHIMÈNE, QUI L'EÛT DIT? RODRIGUE, QUI
L'EÛT CRU?
Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de
preto, e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida
pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde
jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada
ou de fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e
eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos,
porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis.
Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a
morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo,
que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a
simples saudade.
Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade
presente; há nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e
cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras,
porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se
gosta sem doer.
Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto
deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora
importa saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na
alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e
veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito,
que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e
da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais
interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé;
durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular
palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões
sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois
corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se
em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da
velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que
quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e
porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos
escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.
— Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu. — Ora, defuntos!
respondeu Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:
— Ando a ver se ponho os vadios para a rua.
Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podíamos falar um ao outro, sem perigo. Virgília deu-me longas
notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má
língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo,
sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não
deixava nada.
— Que idéias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe
que não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta
estarmos vivos.
E vendo o relógio:
— Jesus! são três horas. Vou-me embora.
— Já?
— Já; virei amanhã ou depois.
— Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não
tem senhoras...
— Sua mana?
— Há de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.
Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e disse com
gravidade:
— Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar
dúvidas, virei com o Nhonhô.
Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade
de cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu
corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me
e disse ao filho:
— Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer
falar para fazer crer que está à morte.
Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura
galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas
imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse
denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma
dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras.
Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio
secretos, meio divulgados, vi-a falar com desdém e um pouco de
indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho
sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu
perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon
tivesse nascido gavião...
Era o meu delírio que começava.
CAPÍTULO VII / O DELÍRIO
Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o
eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação
destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à
narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é
interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns
vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro,
escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões
e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de São
Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com
fechos de prata e estampas; idéia esta que me deu ao corpo a mais
completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as
minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre,
alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a
imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo,
que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou
confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou
vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe
disse que a viagem me parecia sem destino.
— Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.
Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me
entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas; e,
perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo
de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto
peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha
parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá
de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade,
por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa
como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou
menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de
cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho;
lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e
que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos
gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal
galopava numa planície branca de neve, e vários animais grandes e
de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei
falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
— Onde estamos?
— Já passamos o Éden.
— Bem; paremos na tenda de Abraão.
— Mas se nós caminhamos para trás! redargüiu motejando a minha
cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou e parecer-me enfadonha e
extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado
impalpável. E depois — cogitações do enfermo — dado que
chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos,
irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as
unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim
pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos
nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais
tranqüilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da
imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até
ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme,
brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio
daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das
coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso,
uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos
rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas
selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque
os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era
muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a
soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve,
perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A
figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito
de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a
mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo
pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu
orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho
da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua
consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e
levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe
de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma
contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a
feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da
eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam
encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão
glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do
qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua
contemplação.
— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma
fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci,
tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã,
que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a
Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E
por que Pandora?
— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de
todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu
estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo,
espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale,
afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos;
pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então,
encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes
de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do
espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei
menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde,
a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior
benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração
este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de
golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que
passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo,
supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o
outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não
tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque
o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto
melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os
olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo,
ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu,
leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças
todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos
apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas.
Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do
homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam
dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e
a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a
condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso
fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não
obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que
passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que
se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor
multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí
vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba,
e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a
vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o
homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram
as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o
pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim,
em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia
à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era
uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante
da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva,
feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável,
outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da
imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da
felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar
pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um
escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de
angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e
não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, —
de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez
monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que
fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o
espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é
divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as
gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os
Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo,
e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força
misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os
séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o
último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e
continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então
tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século
trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de
verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de
novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo
que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a
história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e
vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de
cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva,
fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao
ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na
obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a
melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim
chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil,
destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas
ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim
passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia.
Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!;
mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a
compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por
isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros
minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu
tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás
começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de
um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato
Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
CAPÍTULO VIII / RAZÃO CONTRA SANDICE
Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras
de Tartufo:
La maison est à moi, c'est à vous d'en sortir.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É
sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora,
se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez,
outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta
amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve
quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não
queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o
que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no
sótão.
— Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder
sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar
mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mistério...
— Que mistério?
— De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só
uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
— Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...
sempre a mesma coisa...
E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas,
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a
língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...
CAPÍTULO IX / TRANSIÇÃO
E vejam agora com que destreza; com que arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de
Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há
juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui
como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em
que nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a
atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com
todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na
verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa
indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios,
mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da
vizinha fronteira, nem do inspetor de quarteirão. É como a
eloqüência, que há uma genuína e vibrante, de uma arte natural e
feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de
outubro.
CAPÍTULO X / NAQUELE DIA
Naquele dia, a árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor. Nasci;
recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se
gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de
fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração;
creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la
com duas meias dobras. Lavado e enfaixado, fui desde logo o herói
da nossa casa. Cada qual prognosticava a meu respeito o que mais
lhe quadrava ao sabor. Meu tio João, o antigo oficial de infantaria,
achava-me um certo olhar de Bonaparte, coisa que meu pai não pôde
ouvir sem náuseas; meu tio Ildefonso, então simples padre, farejavame
cônego.
— Cônego é o que ele há de ser, e não digo mais por não parecer
orgulho; mas não me admiraria nada se Deus o destinasse a um
bispado... É verdade, um bispado; não é coisa impossível. Que diz
você, mano Bento?
Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e
alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me à cidade e ao
mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se era
inteligente, bonito...
Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois;
ignoro a mor parte dos pormenores daquele famoso dia. Sei que a
vizinhança veio ou mandou cumprimentar o recém-nascido, e que
durante as primeiras semanas muitas foram as visitas em nossa
casa. Não houve cadeirinha que não trabalhasse; aventou-se muita
casaca e muito calção. Se não conto os mimos, os beijos, as
admirações, as bênçãos, é porque, se os contasse, não acabaria mais
o capítulo, e é preciso acabá-lo.
Item, não posso dizer nada do meu batizado, porque nada me
referiram a tal respeito, a não ser que foi uma das mais galhardas
festas do ano seguinte, 1806; batizei-me na igreja de São Domingos,
uma terça-feira de março, dia claro, luminoso e puro, sendo
padrinhos o Coronel Rodrigues de Matos e sua senhora. Um e outro
descendiam de velhas famílias do Norte e honravam deveras o
sangue que lhes corria nas veias, outrora derramado na guerra
contra Holanda. Cuido que os nomes de ambos foram das primeiras
coisas que aprendi; e certamente os dizia com muita graça, ou
revelava algum talento precoce, porque não havia pessoa estranha
diante de quem me não obrigassem a recitá-los.
— Nhonhô, diga a estes senhores como é que se chama seu
padrinho.
— Meu padrinho? é o Excelentíssimo Senhor Coronel Paulo Vaz Lobo
César de Andrade e Sousa Rodrigues de Matos; minha madrinha é a
Excelentíssima Senhora D. Maria Luísa de Macedo Resende e Sousa
Rodrigues de Matos.
— É muito esperto o seu menino! exclamavam os ouvintes.
— Muito esperto, concordava meu pai; e os olhos babavam-se-lhe de
orgulho, e ele espalmava a mão sobre a minha cabeça, fitava-me
longo tempo, namorado, cheio de si.
Item, comecei a andar, não sei bem quando, mas antes do tempo.
Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agarrar às
cadeiras, pegavam-me da fralda, davam-me carrinhos de pau. — Só
só, nhonhô, só só, dizia-me a mucama. E eu, atraído pelo chocalho
de lata, que minha mãe agitava diante de mim, lá ia para a frente,
cai aqui, cai acolá; e andava, provavelmente mal, mas andava, e
fiquei andando.
CAPÍTULO XI / O MENINO É PAI DO HOMEM
Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente,
como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos
matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas do que
eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do
homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e
verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher
do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o
malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o
doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um
moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos
no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepavalhe
ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas
a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, —
mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai,
nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!” — Esconder
os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar
pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e
outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio
indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito
robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às
vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples
formalidade: em particular dava-me beijos.
Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a
quebrar a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas
opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não
passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei
pelo rabicho das cabeleiras.
Outrossim, afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclineime
a atenuá-la, a explicá-la, a classifiquei-a por partes, a entendê-la,
não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e
lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar
alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as
orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia
o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã,
antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me
perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre
a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o
alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah!
brejeiro! ah! brejeiro!
Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de
pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa,
— caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada;
temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu
deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha
educação, que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa,
incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes
alguns reparos ao irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do
que ensino, e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia
que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao
sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si
próprio.
De envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo
estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um
deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa
picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais
ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me
respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão;
com a diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto
escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a
princípio, depois entendendo, e enfim achando-lhe graça. No fim de
certo tempo, quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim,
dava-me doces, levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar
alguns dias, não poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da
chácara, no lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam
roupa; aí é que era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e
um estalar de risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro
ficava muito longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a
arregaçar-lhes um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque,
outras fora, inclinadas sobre as peças de roupa, a batê-las, a
ensaboá-las, a torcê-las, iam ouvindo e redargüindo às pilhérias do
tio João, e a comentá-las de quando em quando com esta palavra:
— Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!
Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e
pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior,
apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que
visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a hierarquia,
as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância,
não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia;
mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e casos
das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição
de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que
podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na
observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía
algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente
da força de as incutir, de as impor aos outros.
Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa
companhia, uns dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não
merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas
intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a
expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, —
vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do
arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa
terra e desse estrume é que nasceu esta flor.
CAPÍTULO XII / UM EPISÓDIO DE 1814
Mas eu não quero passar adiante, sem contar sumariamente um
galante episódio de 1814; tinha nove anos.
Napoleão, quando eu nasci, estava já em todo o esplendor da glória e
do poder; era imperador e granjeara inteiramente a admiração dos
homens. Meu pai, que à força de persuadir os outros da nossa
nobreza, acabara persuadindo-se a si próprio, nutria contra ele um
ódio puramente mental. Era isso motivo de renhidas contendas em
nossa casa, porque meu tio João, não sei se por espírito de classe e
simpatia de ofício, perdoava no déspota o que admirava no general,
meu tio padre era inflexível contra o corso; os outros parentes
dividiam-se: daí as controvérsias e as rusgas.
Chegando ao Rio de Janeiro a notícia da primeira queda de Napoleão,
houve naturalmente grande abalo em nossa casa, mas nenhum
chasco ou remoque. Os vencidos, testemunhas do regozijo público,
julgaram mais decoroso o silêncio; alguns foram além e bateram
palmas. A população, cordialmente alegre, não regateou
demonstrações de afeto à real família; houve iluminações, salvas, Te-
Deum, cortejo e aclamações. Figurei nesses dias com um espadim
novo, que meu padrinho me dera no dia de Santo Antônio; e,
francamente, interessava-me mais o espadim do que a queda de
Bonaparte. Nunca me esqueceu esse fenômeno. Nunca mais deixei de
pensar comigo que o nosso espadim é sempre maior do que a espada
de Napoleão. E notem que eu ouvi muito discurso, quando era vivo, li
muita página rumorosa de grandes idéias e maiores palavras, mas
não sei por que, no fundo dos aplausos que me arrancavam da boca,
lá ecoava alguma vez este conceito de experimentado:
— Vai-te embora, tu só cuidas do espadim.
Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no
regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a
destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das
aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou quando menos,
de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria,
herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as
grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às
madres da Ajuda as compotas e as marmeladas; lavaram-se,
arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as
vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico.
Dada a hora, achou-se reunida uma sociedade seleta: o juiz-de-fora,
três ou quatro oficiais militares, alguns comerciantes e letrados,
vários funcionários da administração, uns com suas mulheres e filhas,
outros sem elas, mas todos comungando no desejo de atolar a
memória de Bonaparte no papo de um peru. Não era um jantar, mas
um Te-Deum; foi o que pouco mais ou menos disse um dos letrados
presentes, o Dr. Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos
de casa o acepipe das musas. Lembra-me, como se fosse ontem,
lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho,
casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que
lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de
uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos
o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto,
devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou
aos seus deuses não acabar mais. Pedia um mote, davam-lho, ele
glosava-o prontamente, e logo pedia outro e mais outro; a tal ponto
que uma das senhoras presentes não pôde calar a sua grande
admiração.
— A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque
nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa.
Aquilo sim! que facilidade! e que versos! Tivemos lutas de uma e
duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas
e bravos. Imenso talento o do Bocage! Era o que me dizia, há dias, a
senhora Duquesa de Cadaval...
E estas três palavras últimas, expressas com muita ênfase,
produziram em toda a assembléia um frêmito de admiração e pasmo.
Pois esse homem tão dado, tão simples, além de pleitear com poetas,
discreteava com duquesas! Um Bocage e uma Cadaval! Ao contato de
tal homem, as damas sentiam-se superfinas; os varões olhavam-no
com respeito, alguns com inveja, não raros com incredulidade. Ele,
entretanto, ia caminho, a acumular adjetivo sobre adjetivo, advérbio
sobre advérbio, a desfiar todas as rimas de tirano e de usurpador.
Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das
glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos
satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos,
espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa,
atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em
talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco,
finamente ralado, amarelo como uma gema, — ou então o melado
escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em
quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha
quebrar a gravidade política do banquete. No meio do interesse
grande e comum, agitavam-se também os pequenos e particulares.
As moças falavam das modinhas que haviam de cantar ao cravo, e do
minuete e do solo inglês; nem faltava matrona que prometesse bailar
um oitavado de compasso, só para mostrar como folgara nos seus
bons tempos de criança. Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro
notícia recente dos negros novos, que estavam a vir, segundo cartas
que recebera de Loanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já
negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Traziaas
justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O
que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e
vinte negros, pelo menos.
— Trás... trás... trás... fazia o Vilaça batendo com as mãos uma na
outra. O rumor cessava de súbito, como um estacado de orquestra, e
todos os olhos se voltavam para o glosador. Quem ficava longe
aconcheava a mão atrás da orelha para não perder palavra; a mor
parte, antes mesmo da glosa, tinha já um meio riso de aplauso,
trivial e cândido.
Quanto a mim, lá estava, solitário e deslembrado, a namorar certa
compota da minha paixão. No fim de cada glosa ficava muito
contente, esperando que fosse a última, mas não era, e a sobremesa
continuava intata. Ninguém se lembrava de dar a primeira voz. Meu
pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas,
mirava-se todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciavase
com a familiaridade travada entre os mais distantes espíritos,
influxo de um bom jantar. Eu via isso, porque arrastava os olhos da
compota para ele e dele para a compota, como a pedir-lhe que ma
servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo. E
as glosas sucediam-se, como bátegas d'água, obrigando-me a
recolher o desejo e o pedido. Pacientei quanto pude; e não pude
muito. Pedi em voz baixa o doce; enfim, bradei, berrei, bati com os
pés. Meu pai, que seria capaz de me dar o sol, se eu lho exigisse,
chamou um escravo para me servir o doce; mas era tarde. A tia
Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma
escrava, não obstante os meus gritos e repelões.
Não foi outro o delito do glosador: retardara a compota e dera causa
à minha exclusão. Tanto bastou para que eu cogitasse uma vingança,
qualquer que fosse, mas grande e exemplar, coisa que de alguma
maneira o tornasse ridículo. Que ele era um homem grave o Dr.
Vilaça, medido e lento, quarenta e sete anos, casado e pai. Não me
contentava o rabo de papel nem o rabicho da cabeleira; havia de ser
coisa pior. Entrei a espreitá-lo, durante o resto da tarde, a segui-lo,
na chácara, aonde todos desceram a passear. Vi-o conversar com D.
Eusébia, irmã do sargento-mor Domingues, uma robusta donzelona,
que se não era bonita, também não era feia.
— Estou muito zangada com o senhor, dizia ela.
— Por quê?
— Porque... não sei por quê... porque é a minha sina... creio às vezes
que é melhor morrer.
Tinham penetrado numa pequena moita; era lusco-fusco; eu seguios.
O Vilaça levava nos olhos umas chispas de vinho e de volúpia.
— Deixe-me! disse ela.
— Ninguém nos vê. Morrer, meu anjo? Que idéias são essas! Você
sabe que eu morrerei também... que digo?... morro todos os dias, de
paixão, de saudades...
D. Eusébia levou o lenço aos olhos. O glosador vasculhava na
memória algum pedaço literário e achou este, que mais tarde
verifiquei ser de uma das óperas do Judeu:
— Não chores, meu bem; não queiras que o dia amanheça com duas
auroras.
Disse isto; puxou-a para si; ela resistiu um pouco, mas deixou-se ir;
uniram os rostos, e eu ouvi estalar, muito ao de leve, um beijo, o
mais medroso dos beijos.
— O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia! bradei eu correndo pela
chácara.
Foi um estouro esta minha palavra; a estupefação imobilizou a todos;
os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos,
segredos, à socapa, as mães arrastavam as filhas, pretextando o
sereno. Meu pai puxou-me as orelhas, disfarçadamente, irritado
deveras com a indiscrição; mas no dia seguinte, ao almoço,
lembrando o caso, sacudiu-me o nariz a rir: Ah! brejeiro! ah!
brejeiro!
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